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03 de Agosto de 2020 às 19:52

Lisboa - Marilyn

Lisboa não é nem nunca foi – longe disso – a mais bela cidade de mundo (embora talvez seja a mais bela das cidades que o não são realmente quando vistas de perto e ao pormenor), mas nos últimos anos quase parecia; a cidade amante, mãe e criança, tudo numa só; a cidade bela e misteriosa, a cidade doce, terna, meio risonha, vagamente triste, a cidade facilmente desejável (ah, como se o desejo alguma vez pudesse ser fácil!).

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No primeiro dia de agosto – dia inicial (mas não aquele inteiro e limpo de Sophia) de uma espécie de férias – deambulo por Lisboa. E ocorre-me várias vezes (mesmo não querendo) o verso de abertura do poema de Ruy Belo sobre Marilyn Monroe, “morreu a mais bela mulher do mundo”. Coisa que, aliás, ela não foi, mas parecia ser, pois era a ideia da mais bela mulher do mundo, toda ela fantasia, como sempre é o superlativo (e por isso todo o amor também é em grande parte fantasia). Bénard da Costa, ao mesmo tempo que alertava para as suas camadas de mistério e para a sua regular proximidade do abismo, também lembrava a sinonímia (invocando aquele mesmo poeta) Marilyn-mulher/ideia (“em vez de Marilyn dizer mulher”). E a sua fragilidade, o esplendor à beira do caos; mãe, amante, criança, tudo numa só; e uma urgente, intensa e paradoxal sensação de beleza e de ruína, conquista e perigo, fulgor e perda. Marilyn era essencialmente uma ideia, e foi isso que fez dela a mais bela mulher do mundo, mas foi também o que a matou. Quando a recordo, recordo-a principalmente no seu derradeiro filme, “The Misfits” – um filme aliás que também teve, próximas da ruína, duas outras ideias, desta feita de homem, ainda que diferentes, Clark Gable e Montgomery Clift. Nesse seu desempenho – paradoxalmente o mais estranho e o mais apropriado a Marilyn-ideia –, temo-la luminosa, mas perdida, a oferecer uma ternura envolta em sombras, um precário perfume, uma possibilidade de vazio total debaixo de uma aparência de esplendor. E, não muito depois, ela foi-se. A mulher, pelo menos.

Ora, Lisboa não é nem nunca foi – longe disso – a mais bela cidade de mundo (embora talvez seja a mais bela das cidades que o não são realmente quando vistas de perto e ao pormenor), mas nos últimos anos quase parecia; a cidade amante, mãe e criança, tudo numa só; a cidade bela e misteriosa, a cidade doce, terna, meio risonha, vagamente triste, a cidade facilmente desejável (ah, como se o desejo alguma vez pudesse ser fácil!). Uma fantasia de cidade, como Marilyn era uma fantasia de mulher. E Lisboa foi assim e durou algum tempo, enquanto cidade-montra. E agora, nestes dias novos e muito diferentes, sem o cortejo de espectadores para os quais criámos e que connosco criaram essa “nova” cidade, ela está morta; ou pelo menos está suspensa, uma montra à espera de vez, sem olhos que a façam objeto aparentemente vivo, sem poeira, sem sombra.

Lisboa é a minha cidade há mais de 30 anos, embora a cidade de hoje seja bem diferente dessa outra de há três décadas, em muitas coisas melhor, noutras nem tanto, mas isso aqui interessa pouco. O que interessa é que nos últimos anos passeámos com uma trela fácil e colorida – idolátricos (muito idolátricos; e também arredados, como sempre, de um projeto e de uma estratégia de cidade(s)) – uma Lisboa mais para ser olhada do que para ser vivida, mais uma ideia de cidade do que uma cidade real. E, agora, afastados que estão os olhos que a faziam, ao menos nas nossas cabeças, e também nas nossas bolsas (sim, sim), uma cidade-Marilyn, ela mostra-se-nos em toda a sua fantasia, bela (sim, bela), mas muito inadaptada. Não perdeu os traços de beleza, sejam os que já tinha, sejam os que uma empenhada cosmética lhe deu ao longo destes anos, mas que olhos agora a olham e veneram? O que vale uma montra se não há quem a contemple, frequente e deseje? Lisboa percebe-se – como talvez Marilyn se tenha percebido a caminho de um punhado de barbitúricos – como algo que só é, se tiver olhos que a vejam, adorem, fantasiem, queiram. Esses olhos não chegaram para Norma Jeane, a verdadeira mulher dentro de Marilyn. Até há poucos meses parecem ter chegado para a fantasia de Lisboa. Mas e agora? Voltarão os olhos? E, voltando, serão suficientes?

Uma cidade não é apenas, nem principalmente, uma montra. Tal como uma mulher, ou qualquer pessoa, não é principalmente uma fantasia, muito menos apenas um (obscuro ou não) objeto de desejo. Precisa de ser um sujeito, tem de ser um sujeito. Gostaria que esta Lisboa, mais de 30 anos depois daquela que inicialmente conheci (e amei), se possa tornar mais sujeito, e menos objeto, mais para ser do que para ver, mesmo que em 30 anos ela se tenha tornado bem mais agradável à vista. Mas isso só não basta. Não basta, quando faltam – como agora – os olhos que dão intensas vida e cor à fantasia, mas também realmente não basta quando eles existem. Não renego, antes pelo contrário, a Lisboa-fantasia que ganhámos, mas nem só (nem essencialmente) de fantasia podemos viver, agora e sempre. E é de viver que se trata, a cidade e nós nela. Como escreveu o poeta: “Era mulher era a mulher mais bela / mas não há coisa alguma que fazer se certo dia / a mão da solidão é pedra em nosso peito. ... / quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva / um segundo bastou foi só estender a mão / e então o tempo sim foi coisa que passou.”

 

Marilyn era essencialmente uma ideia, e foi isso que fez dela a mais bela mulher do mundo, mas foi também o que a matou.

 

Não basta, quando faltam – como agora – os olhos que dão intensas vida e cor à fantasia, mas também realmente não basta quando eles existem.
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