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Rui Patrício - Advogado 05 de Outubro de 2020 às 18:20

Girar de portas, pesos e medidas

Só espero que seja tendência que venha para ficar, e não um tratamento especial ao doutor Moro, por conta dos seus relevantes serviços passados à “salutar e higiénica causa do bem”.

Li algures que o doutor Sérgio Moro, depois de ser um célebre e celebrado juiz, carregado de favoráveis superlativos, e de ser ministro do governo do Presidente Bolsonaro, em que ainda teve direito a muitos “likes” e corações (embora menos do que na função anterior), se tornou agora advogado. Por mim, nada contra, antes pelo contrário, não só porque cada um tem direito a seguir na vida o que quer e pode (desde que não pise os outros), mas também porque penso (pois podia lá ser de outra maneira, não é? – e aqui vai também um emoji com sorriso e piscar de olho) que ser advogado é tão digno quanto ser juiz ou ministro – embora, nos tempos que correm, bem menos propício a receber superlativos positivos. Até aqui tudo bem, e o que eu penso sobre a prestação do agora colega quando esteve juiz e ministro não vem ao caso. Vive e deixa viver.

O que me espanta um pouco (ou talvez não) é não ter ouvido nem lido (admito que possa ser distração, e se for aqui fica a penitência), cá na pátria, nada de especial acerca do tema vindo das carpideiras e vestais costumeiras em verberar o que chamam de “portas giratórias”. Imagine-se que o movimento dos astros era inverso, de advogado a juiz, ou, pior, de advogado a ministro e depois a juiz. Ou, mais singelamente, de advogado a uma coisa qualquer menos “importante”, mas que desse azo à destilação de processos de intenção, lições de moral, análises de superfície e/ou toda a sorte de dislates, precipitações e “postas de pescada”. Havia de ser bonito. Aqui d’el Rei. Mas como é ao contrário, e como o doutor Moro ainda gozará porventura de muitos créditos no deve e haver de tais carpideiras e vestais, nem uma sonora palavrinha. Ainda bem, ao menos uma vez, e a prudência e a temperança nunca fazem mal, nem sobretudo o esperar para ver e avaliar pelos atos e não pelas aparências e, muito menos, por supostas intenções, “agendas” e “programas” – muitas vezes atribuídas pelos “professores de cidadania e moral” a pessoas que nem conhecem, e que até por vezes lhes podem pedir meças nas matérias em que aqueles pretendem doutrinar.

Só espero que seja tendência que venha para ficar, e não um tratamento especial ao doutor Moro, por conta dos seus relevantes serviços passados à “salutar e higiénica causa do bem”. Eu não sou como os anarquistas mexicanos, que, sem mais, logo exclamavam: “Hay Gobierno? Soy contra!” Não é nada o meu caso. Gosto de tentar observar e de pensar. E esperarei para ver, não só as eventuais lições de moral dos “amigos da suposta virtude universal”, mas também quem vai o doutor Moro defender e patrocinar e em que casos, e como, no seu múnus de advogado; e também o que dirão disso. Eu direi o que me aprouver (se me aprouver), mas não esquecerei, como não esqueci no passado o que penso que compete a um juiz e a um ministro, o que julgo que cabe a um advogado, em sentido verdadeiro e próprio.

E também não esquecerei que o epíteto de “portas que giram” tem muito que se lhe diga, e não é assim tão simples como às vezes se quer que pareça ou se faz parecer. Há portas e portas, casos e casos, e nem todas as “revolving doors” são “revolting doors”. Há que ver, analisar, detalhar, provar, e ter o cuidado de não ofender e anatematizar antes do tempo. Até porque as pessoas fazem mais os cargos do que os cargos as fazem a elas. E, já agora, também é bom ver-se ao espelho, por um lado, e, por outro, ter a lucidez de ter presente duas coisas: uma, o mundo dá incontáveis voltas e é pequeno como uma cabeça de alfinete, e Portugal, então, nem a projeto de alfinete chega; outra, mal fora que se quisesse fazer das boas e sãs ideias de transparência e de período de nojo (entre outras) um deserto, porque esse deserto não serve ninguém nem a ninguém interessa, a não ser aos carreiristas da coisa pública ou aos profissionais da suspeição e do populismo fácil, ou mesmo da abjeção rasteira, sejam os que dão a cara (honra lhes seja feita), sejam os “corajosos” comentadores, blogueiros e outros (incluindo os “inefáveis”) que se acobertam sob o confortável anonimato de sarjeta do mundo virtual – onde, como para a rataria noturna de esgoto, tudo vale e tudo é comida. (Que lhes faça, no entanto, bom proveito, pois mesmo quanto a esses tento manter o “vive e deixa viver”.)

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