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Rui Patrício - Advogado 01 de Setembro de 2020 às 09:50

Crónica à “clef” (sobre polícias e ladrões)

Entre Parménides e Heráclito, ambos tinham razão, porque há coisas que nunca mudam e outras mudam muito rapidamente, sendo que estas às vezes mudam porque aquelas nunca mudam.

Em miúdo creio que via bastante bem, e só comecei a usar óculos aos 18 anos e só quando já ia entrado nos 40 descobri que tinha um problema sério de visão (no sentido oftalmológico, não metafórico, porque neste sentido descobri antes que porventura o teria, ou talvez ainda não tenha descoberto bem – quem sabe?). Porém, nunca vi bem a dicotomia preto-branco, e talvez por isso, mesmo na idade em que quase todos gostam, eu nunca apreciei por aí além brincar aos polícias e ladrões. Sempre gostei mais de matizes e da complexidade por baixo das simplificações fáceis. Porém, esta é uma história sobre polícias e ladrões, embora seja uma história involuntária, pois ela veio ter comigo, eu não fui ter com ela. E é uma crónica à “clef”, importando a designação da literatura, na qual, como é sabido, a expressão romance à “clef” designa a forma narrativa em que o autor trata de pessoas reais por meio de personagens fictícias. Pois escrevamos uma crónica parcialmente à “clef”, falando de A e B, como nos casos práticos de faculdade, mas em que eu sou eu mesmo, ortónimo. A história é verdadeira. Tão verdadeira quanto é certo que foi vivida por mim, que ouvi e vi com estes ouvidos e estes olhos que a terra – ou o fogo – haverá de comer. E também mostra que, entre Parménides e Heráclito, ambos tinham razão, porque há coisas que nunca mudam e outras mudam muito rapidamente, sendo que estas às vezes mudam porque aquelas nunca mudam. Parece paradoxal e complexo, mas não é, é uma história tradicional de polícias e ladrões, e eu entro nela, não sendo nem polícia nem ladrão.

Certo dia, ia eu ali para os lados em que a Rua Gomes Freire desagua na Praça José Fontana, veio ter comigo um polícia, um polícia importante, o senhor A, e disse-me que havia gostado muito de umas coisas contra-corrente que eu tinha escrito a respeito de um ladrão de informação (perdão, de um “especialista benfeitor”), e que era importante ter a coragem de dizer as coisas como elas são, e não alinhar pelo coro sonoro – que então se vivia, mas mal sabíamos nós o que ainda o futuro nos reservaria nessa matéria – no sentido da quase beatificação do meliante, o senhor B. Fiquei até um pouco espantado e um tudo-nada encavacado, pois não esperava que tão importante personagem se desse ao trabalho, além de ler alguns dos meus escritos, de me vir parabenizar em plena rua, mais a mais não tendo nós praticamente conhecimento nem trato pessoal. Agradeci, e segui caminho. E pensei, “ora, aí está, afinal há quem veja as coisas bem, e não vá em cantigas fáceis de embalar tolos e saiba que devassar é devassar, ladrão é ladrão, manipular é manipular, et cetera”.

Os tempos correram, nunca mais pensei no assunto, mas diz-se agora que o senhor A, que continua a ser polícia e igualmente (ou mais ainda) importante, tem outra opinião sobre as atividades do senhor B – e não será, alias, o único. Não sei se tem, não mo disse, mas diz-se por aí à boca cheia que sim, e não vi desmentido. Espanta-me um bocadinho. E questiono se seriam sinceras aquelas palavras que me disse há tempos. Quero crer que sim. Mudou de opinião, está no seu direito, e lá terá (e terão também os outros) as suas razões. No final da vida, Gombrowicz escreveu que: “... A escolha não é a escolha de um fato, é a escolha de um valor. Eu não posso escolher livremente o meu tamanho, mas depende de mim considerar a minha estatura como qualidade ou defeito.” E creio que teria concordado que posso, também, escolher o meu comportamento. E nessa escolha inclui-se mudar de opinião, claro, e também, como é o meu caso, ter opinião sobre as mudanças de comportamento ou de opinião de outros. Só os burros não mudam de opinião, diz-se, mas também só os burros não têm opinião sobre as mudanças dos outros. Viver é muito perigoso, como diz Riobaldo, o protagonista de “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa, naquela que é uma frase mantra. E ter memória também pode ser, digo eu. E, mesmo que o não seja, é útil, isso é. E eu, que tenho boa memória, cá estou e estarei, para recordar e para ver. O mundo dá voltas e voltas. Se dá.

 

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