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As entrevistas que marcaram o ano: Pedro da Silva Martins

Foi sobretudo em 2011 que Pedro da Silva Martins saltou para cima do palco ao som dos Deolinda e do “Parva Que Sou”, tema que se tornou numa espécie de hino de uma “geração à rasca”. Treze anos depois, o compositor, letrista e guitarrista volta às canções com consciência política na nova banda Cara de Espelho. “Paraíso Fiscal”, “Político Antropófago” e “Testa de Ferro” são alguns dos seus temas.
Lúcia Crespo e Miguel Baltazar - Fotografia 24 de Dezembro de 2024 às 19:00

Foi sobretudo em 2011 que Pedro da Silva Martins saltou para cima do palco ao som dos Deolinda e do "Parva Que Sou", tema que se tornou numa espécie de hino de uma "geração à rasca". Treze anos depois, o compositor, letrista e guitarrista volta às canções com consciência política na nova banda Cara de Espelho, que junta nomes como Carlos Guerreiro, Luís J. Martins, Sérgio Nascimento e Maria Antónia Mendes (Mitó). "Paraíso Fiscal", "Político Antropófago" e "Testa de Ferro" são alguns temas do disco de estreia, lançado a 26 de janeiro. A digressão arranca a 24 de fevereiro no Theatro Circo, em Braga. Seguem-se concertos no Cineteatro Louletano a 2 de março, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, a 5 de março, e na Casa da Música, no Porto, a 16 de março. Eis Pedro da Silva Martins, numa conversa feita de palavras soltas.


* Entrevista publicada originalmente a 9 de fevereiro de 2024


Como definem o projeto Cara de Espelho?

É uma proposta de música popular portuguesa, um mar onde navegamos há alguns anos, e também a tentativa de encontrar nesse mar uma ilha ou um continente diferente, o que for. Queremos que seja algo distinto do que encontrámos até aqui.

 

O lançamento vem assinalar os 50 anos do 25 de Abril?

Foi um acaso. Havia o interesse de trabalharmos juntos, algo que pudemos concretizar durante o confinamento e a pandemia, pois tínhamos mais tempo. Na altura, o Carlos (Guerreiro) e o Sérgio Nascimento desafiaram-me a fazer umas canções para um projeto pensado só para eles os dois, mas eu disse logo: também quero tocar nesse grupo!

 

Não querias ficar nos bastidores?

Sabia que iria aprender imenso com eles e que seria uma experiência muito boa. E assim tem sido. Depois entrou no grupo o meu irmão, Luís J. Martins, e a seguir pensámos de imediato na Mitó como voz. Ela respondeu-nos: "não sei, decidi mudar de vida, já não estou bem na música… Bom, como é convosco, vou alinhar". Mais tarde, encontrei-me com o Nuno Prata, nosso amigo há muitos anos, falei-lhe do projeto e dias depois ele mandou-me uma mensagem a perguntar se não precisávamos de um baixista. "Claro que sim!" Foi tudo acontecendo assim, como um projeto de amigos.

E também como um projeto político?

Eu sentia necessidade de um projeto com uma consciência política; sentia necessidade de algo mais interventivo ou pelo menos com aquele espírito da canção interventiva, um lado que já mostrámos, acho eu, em Deolinda. Ao mesmo tempo, temos connosco o Carlos Guerreiro, um músico que tem uma história incrível: tocou com o Zeca Afonso, com o Sérgio Godinho, com o Fausto, com o Zé Mário; atravessou toda aquela geração de músicos e não faria sentido tocar com o Carlos e escrever canções de outra índole que não a índole interventiva. A Mitó também tem essa carga. Eu não imaginaria estas canções cantadas por mais ninguém além da Mitó – nela, a palavra tem um peso que não teria noutra voz. O projeto nasceu logo com a agulha apontada nessa direção. 

 

José Mário Branco discordava um pouco da expressão "música de intervenção". "Intervir, todo o artista intervém. O termo ‘intervenção’ tem servido para se achar que há uns que intervêm e outros que não", dizia.

É verdade, afinal, todas as bandas são políticas, nem que seja pela opção de não fazerem música com conteúdo político – eu também faço outras coisas onde esse lado não existe. Mas, quando aqui falo desse termo, é para dizer que são canções com consciência social e política, que têm esse lado acordado, desperto, não adormecido.

Há aqui um lado de protesto, atento e por vezes chato. Sinto necessidade de morder os calcanhares de algumas pessoas.

Têm um lado de protesto?

Sim, um lado de protesto, atento e por vezes chato, no sentido de ir lá tocar na ferida. E são muitas as feridas. A primeira canção que escrevi foi "Cara que é Tua", que dá o nome Cara de Espelho à banda e reflete a ideia de que ninguém gosta de se ver refletido no espelho, ninguém gosta de ser visto a cru. As pessoas não convivem nada bem com a crítica direta, não reagem bem quando lhes põem um espelho à frente e, de certa forma, o que aqui estamos a fazer, em cada canção, é a pôr um espelho à frente de determinado tipo de assunto ou de determinada personagem. E é fácil identificar um testa de ferro, é fácil identificar o Dr. Coisinho, "que vem coisificar o medo"… É preciso pormos todos estes espelhos cá fora. Sinto mesmo cada vez mais necessidade de a música intervir no sentido de ser chata, de andar a morder os calcanhares de algumas pessoas.

 

Qual é o poder de uma canção?

Eu sempre senti o poder das canções em mim, mas se calhar não têm poder nenhum, não sei bem. Talvez passem ao lado da maior parte das pessoas. Talvez as pessoas prefiram ouvir música para dançar, por exemplo, e não tanto para escutar ou interpretar. Para mim, as canções sempre tiveram poder... Eu aprendi tanto com o Sérgio Godinho, com música brasileira, com tanta coisa. Aprendemos muito a ouvir e a ler as letras do Bob Dylan e de todos esses poetas; aprendemos tanto sobre a vida e sobre tudo.

 

Gostariam que as canções de Cara de Espelho tivessem o efeito "Parva Que Sou", tema dos Deolinda que se tornou uma espécie de hino de uma geração?

"Parva que Sou" não foi nada muito preparado, isto também não é; foi uma constatação da realidade da altura. Muitos amigos estavam na situação que aquela música cantava; viviam em casa dos pais sem perspetivas de casar, de ter filhos, sem esperar algo do dia de amanhã. Na altura terei tido o primeiro laivo de consciência política, acendeu-se uma luz na minha cabeça que dizia: temos de intervir de alguma forma, isto não pode continuar assim, andamos a estudar há uma data de tempo para sermos escravos de uma máquina qualquer – era isso o que a canção dizia. Esse murro na mesa que a canção dá foi um bocado o murro que dei quando escrevi essa canção; era um murro que tinha de ser dado. Mas depois tudo atingiu uma dimensão que me escapou por completo.

Foi a seguir à atuação dos Deolinda no Coliseu do Porto em janeiro de 2011 que um grupo de amigos fundou o movimento "Geração à Rasca" – nome que jogava com a expressão "Geração Rasca" usada pelo jornalista Vicente Jorge Silva num editorial em 1994. Tantos anos depois, continuamos "à rasca"?

Acho que muitas pessoas dessa geração já nem sequer estão em Portugal. Algumas terão conseguido refazer a sua vida, outras se calhar resignaram-se, outras foram-se mesmo embora. Aquele momento que atravessámos na altura, se calhar, ainda continua: continuamos sem saber como será o dia de amanhã. E hoje existem novos problemas. O "Parva que Sou" teria agora de incluir tópicos como as rendas e o preço das casas...

 

Cara de Espelho tem temas como "Corridinho Português" – que, além de recriar a identidade musical tradicional, assume-se como um comentário interventivo num mundo cheio de divisões religiosas, políticas, identitárias ou étnicas, não deixando de lembrar José Afonso e a necessidade de "animar a malta" – "e que tal juntar a malta numa boa; a um corridinho de Lisboa volta e meia e roda o par".

No início, tínhamos sobretudo canções mais pesadas e mais lentas como a "A Morte do Artista" e sentimos que nos faltava uma coisa mais mexida. Em conversa com o Carlos Guerreiro, surgiu a ideia deste corridinho português, que se baseia num corridinho algarvio e que fala da tentativa absurda de dividir a sociedade em rótulos: "Separando o africano do cigano; do chinês, do indiano, ucraniano, muçulmano, do romeno ou tirolês; como vês sobra muito, muito pouco português, ó pá".

 

No tema "Político Antropófago", voltam ao Zeca: toda a cautela é pouca para estas criaturas famintas que "comem tudo e não deixam nada"...

O Zeca e vários cantautores fazem parte de nós. Estão sempre presentes; mesmo não estando, estão cá. Estão cá através das músicas, das coisas que disseram e das conversas que tiveram. Tudo isto acaba por se refletir no nosso trabalho… "Político Antropófago" é uma personagem que todos reconhecemos, e pode ser tanta gente; sempre houve e vai haver políticos antropófagos. São os políticos que "arrancam" pedaços das pessoas, só que muita gente não se importa com isso e "entrega" os filhos e as filhas, que vão lutar nesta guerra aqui e ali, e a pouco e pouco os membros da família vão desaparecendo...

 

A canção "Paraíso Fiscal" é também muito visual: "quando morrer, eu quero subir ao paraíso fiscal; vida de contribuinte é deveras infernal; que São Pedro me receba no seu portal das finanças…".

Eu até imaginei essa canção como uma peça de teatro, um pouco como a barca do Gil Vicente no meio da escuridão, com um coro de remadores atrás, e esses remadores somos nós, que estamos a cantar e acabamos a dizer "ai, que linda offshore" quando chegamos finalmente ao paraíso. É mesmo assim que imagino tudo. Por vezes visualizo a canção em termos cénicos e, se funcionar em termos cénicos, se calhar também funciona cantada. É uma linguagem diferente, mas ajuda-me a compor.

A democracia nunca esteve tão posta em xeque como hoje.

Nas manifestações pelo direito à habitação, temos ouvido de novo letras de José Afonso e de Sérgio Godinho, tal como o tema Liberdade: "A paz, o pão, habitação, saúde, educação". De alguma forma, as canções de protesto são intemporais?

Os problemas é que são intemporais, as questões que cantam é não têm prazo de validade. Há momentos em que essas canções ficam arrumadas numa gaveta, e às vezes é preciso ir lá e recuperá-las. Mas têm aparecido novos projetos – Garota Não, Chullage, EU.CLIDES, entre outros –, que são muito pertinentes e demonstram uma grande vitalidade criativa, e ainda bem. Vivemos hoje um momento particular, há muitas coisas em jogo e uma delas é a própria democracia. A democracia nunca esteve tão posta em xeque como hoje e, sem democracia, fica tudo em causa: a liberdade, o nosso trabalho. Se a democracia está em risco, toda a gente está em risco.

 

Nasceste em maio de 1976, já em liberdade…

Nasci no Hospital Santa Maria, a 100 metros do lugar onde vivo, e portanto a minha vida ainda só andou 100 metros até hoje…! O meu pai era da Serra da Estrela e a minha mãe de Lisboa, mas o "ser-se" de um lugar é sempre algo muito relativo. Nos últimos anos tenho dedicado algum tempo ao estudo da genealogia, e percebi que dizer que somos de determinado sítio é uma coisa errada, nós somos de tanto lado… Eu gosto de resgatar o passado. Os meus pais faleceram há uns anos, a minha família ficou muito pequena e eu decidi ir atrás dos meus antepassados. Há uns tempos, descobri retratos pintados do meu quinto, sexto e sétimo avôs, eles eram almirantes. Encontrei-os numa casa-museu na Madeira. Há assim muitas histórias inesperadas, que nos fazem perceber que estamos todos ligados. O meu pai é de uma aldeia muito pequenina do Parque Natural da Serra da Estrela, Frádigas, e a minha mãe é de Lisboa, mas em 1400 eles já tinham um antepassado em comum. Bem, acho que em 1400 seríamos todos primos…

O que mais descobriste? Sei que o fado vadio esteve muito presente na família.

Tantas coisas. Descobri um familiar que foi músico militar no Algarve em 1700 e tal. Descobri também que o meu trisavô foi vizinho da Severa. Ele chamava-se João Francisco Camacho, era pai da minha bisavó Irene Camacho, a única que conheci. E o primeiro filme sonoro português, "A Severa" (1930), do Leitão de Barros, tem como atores figurantes a minha família – tenho lá uma série de tios-avós. Um dos rostos que aparece e que marcou muito fado é o da minha tia Lália. Ela está com um xaile negro a ouvir a "Rua do Capelão". Foi a primeira vez que se ouviu o fado cantado num ecrã.

 

Os teus avós paternos também cantavam?

O meu avô tocava gaita de beiços e a minha avó cantava, e cantava muito bem, cantava modas antigas. Há um levantamento feito por um padre que costuma ser estudado pelos etnomusicólogos. Eles pegaram no trabalho do tal padre e, nesse levantamento, uma das pessoas que gravou foi a minha avó Anunciação Martins. É dela, aliás, que vem o meu Martins. O meu avô era Pereira, mas eu fiquei com o Martins dela.

 

Quando é que começaste a escrever canções? Foi à mesa do Gabizé, o restaurante que os teus pais tinham na Damaia?

Também. Eu sempre fiz canções como uma brincadeira, escrevia para os amigos, até para os espicaçar. Uma vez escrevi quadras individuais para os meus colegas de escola, duas quadras para cada um, depois passei-as à máquina de escrever, tirei fotocópias e ofereci-lhes. Ainda hoje alguns me dizem: tenho lá aquilo que escreveste para mim.

Estudaste engenharia civil, pensaste em seguir enfermagem, mas a música foi a escolha final. Porquê?

Teve também que ver com a doença da minha mãe. Estava previsto eu ir estudar fora, mas a minha mãe ficou doente e acabou por falecer. Ela costumava ser o braço-direito do meu pai no restaurante, ele ficou sozinho, eu decidi ajudá-lo e deixei um bocado os estudos. Depois tirei um curso de argumento na escola Aula do Risco, e foi isso que fez um clique na minha vida. Senti que era algo que me fazia sentido. A seguir comecei a trabalhar com a Marina Mota na Companhia das Ideias – enviei alguns guiões para o António Avelar de Pinho, ele era letrista da Banda Do Casaco e também escrevia para a Marina Mota. Ele gostou e chamou-me. A par disso, comecei com a música.

 

Com o Bicho de 7 Cabeças.

Sim! Primeiro era eu, o Artur Serra, vocalista, a Mariana Furtado, guitarrista, a que tocava melhor, e o namorado dela, violoncelista. Fizemos uns concertos – coisas para amigos. Depois o Bicho de 7 Cabeças foi crescendo, mudaram algumas das cabeças, até ao ponto de termos mesmo sete cabeças! Mas a passagem profissional para a música só aconteceu com Deolinda. Deolinda marcou-nos a todos. Ninguém estava na música.

A nossa prima Ana [Bacalhau] era arquivista no Ministério das Finanças. Eu estava a trabalhar para televisão... Deolinda foi um daqueles "booms" que acontecem uma vez na vida.

A vocalista Ana Bacalhau estava a trabalhar no Ministério das Finanças e o José Pedro Leitão (contrabaixista) era engenheiro num gabinete de projetos.

A nossa prima Ana era arquivista no Ministério das Finanças. Eu estava a trabalhar para televisão. Mas aquilo impôs-se de tal forma... Na altura, ainda tínhamos o Bicho de 7 Cabeças, a Ana e o Zé estavam nos Lupanar, mas a certa altura tivemos de dizer às nossas bandas que não tínhamos tempo para tudo... Deolinda foi um daqueles "booms" que acontecem uma vez na vida. Na altura em que eu escrevia humor, estava a aparecer em força o "stand-up" e lembro-me de o Pedro Tochas me dizer: ‘eh pá, Pedro, escreve uns textos e vem para cima do palco’. Respondi: ‘só vou para cima do palco se tiver um texto que puxe por mim’ – eu não ia para cima de um palco puxar por um texto. Ele depois foi ver Deolinda e disse: isto é o teu "stand-up". Deolinda puxou por mim e pôs-me a tocar; pegou em todos nós; de repente estávamos todos num palco, era uma coisa muito forte, muito incontrolável. Estávamos num sítio e as pessoas cantavam as nossas canções...

 

É isso que também desejam com este novo disco?

Não sei se… Perto de minha casa há uma loja, o dono é muito simpático e conhece o meu trabalho. No outro dia perguntou-me: ‘como é que se chama a tua nova banda?’ ‘Cara de Espelho’. Depois ouviu as músicas e disse: ‘não vão ter tanto sucesso como Deolinda, o registo não é muito comercial’. Ele tem uma garrafeira, eu vou lá de vez em quando, e respondi: ‘estás a ver aquele vinho? Deolinda é um bocado esse vinho. É uma banda que está lá. Mesmo que a gente não esteja, a banda está’. E eu gostava que Cara de Espelho fosse também essa banda que está lá: podem contar com ela. Não tem a pretensão de ser nada além deste grupo de pessoas a fazer música e que estão a dar o seu melhor.





Dás a cara pelos teus projetos mas também trabalhas muito nos bastidores. Em 2019, a revista Sábado escrevia: "Pedro da Silva Martins, o ‘ghostwriter’ da música portuguesa". Gostas de escrever para os outros?

Sempre me senti bem a escrever para outros e, ao escrever para outros, também sinto que tenho a minha voz – e acaba por ser o meu trabalho a solo. É giro, Cara de Espelho surge um bocado em contraciclo, numa altura em que estão a aparecer muitos projetos a solo, e aparece também em contraciclo com a tendência natural da idade: com os anos, tendemos a apostar numa carreira a solo e não tanto numa banda! Bom, então acho que o meu trabalho a solo está mais nas canções que faço para outras pessoas. Ao fazer uma letra para a Marisa Liz ou uma canção para o Zambujo ou para a Ana Moura, sinto que também estou lá, sinto que aquelas canções são também aquilo que sou.

Também gosto de escrever para os outros. E tenho de me multiplicar - temos todos de nos multiplicar.

Há um lado de transformismo que também te agrada?

Sim. Tenho de me multiplicar. Temos todos de nos multiplicar. E gosto mesmo de estar envolvido em diferentes projetos. Por exemplo, agora estou fazer música para uma espécie de peça de teatro que vai ser cantada por uma criança, e isso é desafiante, porque as palavras têm de ser diferentes, o peso da canção tem de ser diferente. Há uns anos, trabalhei no filme "Technoboss", um musical protagonizado pelo Miguel Lobo Antunes. Fiz as canções com o meu irmão e com o Norberto Lobo, e fazer canções para o Miguel Lobo Antunes, que nunca foi ator nem nunca foi cantor, foi uma experiência muito gira. Foi mesmo desafiante escrever canções para um não-cantor que não sabe cantar e que sabe que vai cantar mal – isso era algo assumido! Mas o Miguel Lobo Antunes é incrível – aliás, aquela matilha dos Lobos é uma coisa impressionante.

 

Dizias que Cara de Espelho surge quase em contraciclo com uma tendência para projetos a solo, sobretudo com o avançar dos anos. Não há idade para formar uma banda?

É tudo muito divertido. O Carlos é o mais velho, mas é o mais infantil de todos, o mais brincalhão, o mais irreverente… É um inventor, um geniozinho, e é um prazer trabalhar com todas estas pessoas. Acho que a música tem a capacidade de rejuvenescer as pessoas… Uma vez, fui tomar café com o José Mário Branco, ele estava a convalescer de uma operação, sentou-se, muito devagar e a custo, e fazia aqueles sons de quem está com dores. Falámos dos discos do Zeca Afonso, daqueles "discaços" incríveis, e às tantas ele começa a desenhar melodias no ar, levanta-se e vai atrás dessas melodias. De repente, a música elevava-o no ar... E isso é algo que também acontece por exemplo com a Lena D’Água, com quem trabalho. A Lena é uma miúda a cantar, é incrível. Eu gostava de, na idade deles, ter a energia que eles têm.

 

Tudo parece fluir quando se faz algo de que se gosta.

Sim, não é preciso ser música, quando gostamos de algo, simplesmente vamos atrás. A história do José Mário Branco marcou-me imenso, vê-lo ali a levantar-se sem custo e a ir atrás das melodias. Quando ele morreu, até escrevi um texto onde dizia: aposto que deve ter encontrado uma melodia incrível para se ter levantado e ido embora... Aprendi imenso com ele. É uma das minhas grandes referências, no rigor e na forma de pensar a música, também na perspetiva de um certo legado: "O que é que os netos, que vão ouvir ou ver aquilo que fizemos, vão dizer de nós? Talvez digam que o avô tentou fazer qualquer coisa boa. Talvez digam que tentou fazer o melhor que estava ao seu alcance".

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