Opinião
Ryanair: o milagre económico é o abuso social
Esta minha sobranceria de europeu já é quase um anacronismo tal é o retrocesso civilizacional a que assistimos, calmamente, de comício em comício.
Este não é um artigo sobre segurança aérea ou escolhas dos consumidores; tão pouco é sobre turismo ou política de emprego, Europa ou mobilidade, jovens atascados em autocarros-voadores a 30.000 pés de altitude, cumprindo o novo pesadelo da emigração ou a "ilusão Erasmus" de uma Europa igualitária; também não é sobre ricos que viajam em 1ª classe vivendo o sonho especulativo do empresário Juan Trippe (fundador da Pan Am e considerado um dos pais do glamour da aviação), ou sobre essa pérfida noção de justiça, que é achar que os pobres até já podem andar de avião mesmo que continuem a ser pobres.
Não; este é um artigo sobre o momento em que a economia e a política se servem do seu primordial objectivo - a gestão da escassez de recursos e a qualidade de vida dos cidadãos - para fabricar negócios. Bem-vindos a bordo da nova Europa, onde o sucesso autocrático dos "resultados" tem um só truque: salários baixos e inversamente proporcionais às cotações em bolsa das empresas de quem o poder político - ineficaz e pouco imaginativo - se tornou absolutamente cativo.
Parece um milagre, não é? Além dos bilhetes quase à borla, não há pacóvio que não celebre efusivamente a existência das "low-cost". São "boas para o turismo", dizem. Sim, são, pelo menos para essa concepção de turismo imposta pelos países ricos do Norte que, não vendo o sol durante dez meses do ano, tanto lhes faz aterrarem em Lisboa como na Sicília, dado que na sua maior parte não sairão de dentro do "cocktail" servido por um moço local que tenta, entre Junho e Setembro, ganhar um ano de dignidade. O que nos resta saber é para quem ficam, de facto, as benesses do florescente negócio turístico - uma olhada empírica para o mapa-mundo rapidamente nos deixa ver o seguinte: celebrar o turismo como motor de qualquer economia ou prosperidade e, portanto, da qualidade de vida dos cidadãos é politicamente, no mínimo, equívoco. Alguns dos melhores destinos turísticos do mundo são dos piores locais para viver. Parece-me mais ou menos correcto afirmar que é evidente que a indústria do turismo não é eficaz na redistribuição da riqueza de que se aproveita e que o seu sucesso só é possível se aferido sem uso da mais elementar imparcialidade.
Disto beneficia a Ryanair; como aliás, desta ilusão beneficiam os governantes que desfazem esta Europa. Em baixo deixo um "link" para um documentário elaborado por uma cadeia de televisão holandesa. O YouTube levá-lo-á (se quiser) a outras sugestões; descobrirá como os pilotos da companhia são praticamente escravizados pela mesma, já que trabalham para pagar o crédito que contrataram para pagar o curso… à Ryanair. As hospedeiras de bordo - cuja acção é determinante entre vida e morte numa situação de evacuação após incêndio a bordo, por exemplo - são formadas em meia dúzia de semanas. Conta-se o caso (e as imagens com câmara oculta são reais) de um exame para as ditas assistentes que se transforma em exame de consulta só porque a lei internacional é omissa em relação a esse facto; é o próprio instrutor que instiga as alunas a fazerem o mesmo dessa forma, sabendo que, não havendo legislação, também não haverá processo judicial possível. Ficamos a saber, também, que se confirmam os rumores de que a própria empresa faz da gestão de combustível um risco aumentado, ao colocar combustível a bordo nos limites da lei, o que a faz poupar dinheiro e ser líder europeu em aterragens de emergência de cada vez que há necessidade de desvio.
Não existe milagre económico na Ryanair, como não existe milagre económico em Portugal e também não existiu no Thatcherismo ou nos livros que deram a ler a Pedro Passos Coelho; o milagre é a nossa tolerância a tanto insulto e fabricação extemporânea, em nome da tal "economia". O consumidor, esse ainda é livre de gastar os trocos que lhe sobram depois de impostos; eu, pessoalmente, não voo na Ryanair pela mesma razão que não compro ténis feitos por trabalho infantil no extremo-oriente. Claro que esta minha sobranceria de europeu já é quase um anacronismo tal é o retrocesso civilizacional a que assistimos, calmamente, de comício em comício.
O tal documentário está aqui: http://www.youtube.com/watch?v=SIu295DWj94