Opinião
"Heroes": A Europa segundo David Bowie
Entretanto, Vladimir Putin está na lista dos nomeados para o Nobel da Paz, caso ninguém tenha dado conta.
Será possível que - numa época em que o número de horas de "broadcasting" para os cromos da política ultrapassa aquilo que há 20 anos seria inimaginável - o advento da Europa se deixe melhor narrar por um disco pop de 1977? Como dizia Viriato Soromenho-Marques, no "Diário de Notícias" do passado dia 4 (in "O Regresso da História"), "A lição de Putin à chanceler Merkel recorda-nos que, quando a história regressa com esplendor, o poder derradeiro não é económico. Reside sempre na ponta das baionetas. Nunca se sabe o que vai acontecer amanhã. Mas adivinha-se como vai acabar." É exactamente à sombra desta lucidez que se desenha "Heroes".
Pertencente à famigerada trilogia berlinense do compositor londrino, "Heroes" é gravado integralmente em Berlim, num estúdio a 500 metros do Muro. Produzido pelo inefável Brian Eno - o tal que percebeu, como poucos, o poder global da insularidade irlandesa dos U2 ao produzir "Achtung Baby" - o disco conta com a participação de Robert Fripp na guitarra e é um "case study" planetário. Recentemente, e numa operação "blitz", Bowie autocitou-se (outra vez) para editar "The Next Day", que mais não é do que uma versão obscura de "Heroes", a faixa-título da obra de 77 (um "remake", não um "cover"). Claro que as analogias às transformações do Tempo e do Espaço - e a nossa infinita vulnerabilidade às mesmas - estavam já no centro do exercício lírico-democrático da letra de "Heroes" original; no entanto, e com tanto "spin doctor" à procura do próximo "sound byte", não deixa de ser assinalável, do ponto de vista de marca, que a versão de 2013 se chame "The Next Day" e não, como o temor do apocalipse nuclear da Guerra Fria tinha enunciado, "The Day After". A percepção do simbolismo da passagem do Tempo e da forma como ele relativiza os nossos dogmas é própria da visão de liberdade altamente sofisticada e precisa que David Bowie traz nos genes de londrino, e que é constituinte de toda a sua ética de artista. Ainda não está esgotado o primeiro minuto do video-clip do tema e já vimos roubo, luxúria, pedintes, prostitutas, sacerdotes, olhos de Édipo arrancados, um Parsifal (ou será Artur, na Távola Redonda?) e Gary Oldman a insultar o "bardo" Bowie que, em trajes de Nazareno, canta neste bar clandestino "I can´t get enough of this doomsday song". Entretanto, Vladimir Putin está na lista dos nomeados para o Nobel da Paz, caso ninguém tenha dado conta.
Já em Maio próximo, o Martin-Gropius-Bau acolhe - em plena Potsdamer Platz - uma versão especial da aclamada exposição-espectáculo que Bowie produziu para o The Victoria and Albert Museum de Londres, e que se tornou no maior e mais célere sucesso de bilheteira que aquela instituição alguma vez apresentou. A curadoria da exposição promete novidades propositadamente concebidas para Berlim, em linha com o respeito antológico que a cidade merece ao próprio Bowie - afinal, foi ali que o hino "Heroes" foi escrito, reza a lenda que inspirado num casal beijando-se junto ao Muro que Bowie terá avistado da janela do estúdio. Eu já fui a Berlim e ia jurar que também me lembro de ver esse mesmo casal por lá, "standing by The Wall".