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Nicolau do Vale Pais 04 de Setembro de 2015 às 10:55

"Espectacularizar" não resolve (a propósito da vida de uma criança)

Sabendo nós que as imagens de violência estão cada vez mais disseminadas, não deveríamos já ter parado para pensar se, de facto, elas contribuíram para alguma melhoria da consciência geral dos problemas?


"Fazer da miséria companheira é conforto para miseráveis."
Mefistófeles, in "Doctor Faustus", Christopher Marlowe, 1589.

Não encontro exemplo mais eloquente do desatino geral a que chegámos do que a falsa questão à volta da publicação - ou não - da fotografia do cadáver afogado de uma criança síria, numa praia da Turquia, enquanto tentava chegar à ilha de Kos, na Grécia.

Quase todos os media - mais frívola ou mais solenemente, em coerência com o seu tom mais ou menos "institucional" - falam sobre a moralidade ou falta dela em relação à decisão de publicar - ou não - a dita. São apresentados argumentos "contra", são apresentados argumentos "a favor" - mas no fim, como se o enumerar se substituísse à verdadeira discussão, a foto é publicada. Salvo erro ou omissão, não vi nenhum meio de comunicação social a dizer "não, não publicamos".

Como seria de esperar, em quase todos eles, a legitimação da decisão de publicar a imagem baseia-se na ideia (a meu ver, bem intencionada, mas tonta) de que todos temos de tomar consciência da real brutalidade dos factos. Neste caso, dos factos que rodeiam a inimaginável crise de refugiados que a Europa tem às portas. Logo aqui se levantam duas questões, que não deixam de ser pertinentes, mesmo para aqueles que consideram haver, de facto, alguma legitimidade no argumento da "tomada de consciência":

- A primeira, de ordem ética, é sabermos que tipo de mundo (e que tipo de media) estamos a criar para que tenhamos de olhar para aquilo que é gráfico, para percebermos aquilo que é íntimo. Sei que é absurdo pôr as coisas nestes termos, mas consintam-me este facilitismo a título de exemplo: precisamos de imagens gráficas de pedofilia para entender o horror do crime?

- A segunda, de ordem pragmática, é esta: sabendo nós que as imagens de violência estão cada vez mais disseminadas (na informação e no entretenimento), não deveríamos já ter parado para pensar se, de facto, elas contribuíram para alguma melhoria da consciência geral dos problemas? Pelo contrário, a vulgarização da violência parece só mesmo contribuir para a sua "normalização"; e se, do ponto vista pessoal, estamos cada vez mais indignados, do ponto de vista colectivo, estamos cada vez mais ineficazes (para não dizer mesmo, infelizes).

Da mesma forma que é legítimo pensar que "Apocalypse Now!" de Coppola (uma ficção) possa ter contribuído mais para a revelação da barbaridade factual do Vietname do que qualquer peça noticiosa da época, também aqui é legítimo que se pergunte que contributo dão estas imagens para a nossa consciência colectiva das coisas. Falo da "consciência" como algo que se tem por comunhão, comiseração ou qualquer processo emocional colectivo que se transforme - por luto ou superação, por exemplo - em algo regenerador, como numa tragédia clássica. Há um elefante na sala que ninguém quer ver, no que toca a este debate, todo ele enviesado: mas há escolha, para o comum cidadão, além de "ter de ver" a imagem? Não. Então porque invocam os media a liberdade de "mostrar", se eu não tenho sequer a hipótese elementar de "não ver"?

Do meu ponto de vista, parece-me que há um voluntarismo generalizado em tudo isto, que serve tudo, menos o propósito da lucidez. Está instalada, de forma transversal à sociedade, a ideia de que "espectacularizar" resolve. Parece-me haver uma clara tendência, quase infantilizada, para acharmos que espectacularizando-se um festival de Verão se resolve uma cidade; espectacularizando-se um candidato se resolve um programa para as eleições; espectacularizando a "amizade" se vence a solidão; espectacularizando a violência se caminha para a Paz; espectacularizando um texto se lhe dá conteúdo. Daí que escreva "vida" em vez de "morte" no título desta crónica. "Vida".

P.S.: é obrigatório referir a posição de liderança política da Alemanha nesta crise, para que conste.

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