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Nicolau do Vale Pais 16 de Outubro de 2015 às 10:19

Cavaco e a democracia popular

Em fim de mandato - e de carreira -, Cavaco não perderia nunca a oportunidade de se revelar essencial, fechando com chave de ouro 20 anos de "poder paternal".


Não vale a pena prosseguir com outra análise que não seja acerca do que fará Cavaco Silva, e porquê. Com efeito, apesar da histeria mediática destas duas semanas, as omissões constitucionais que conferem ao Presidente a hipótese de nomear uma "maioria de esquerda" são as mesmas que lhe conferem o direito de chamar Passos Coelho a formar Governo; é que a "estabilidade" que presidirá à decisão é, em si, um conceito subjectivo. O regime prevê a existência de um Presidente para isto mesmo: fazer política. Não é o desprezo dos seus adversários que lhe retira a importância devida, e Cavaco sabe isso muito bem. Foi reeleito, em sufrágio directo, por mais de 2,3 milhões de portugueses, um resultado que representou mais de 52% do eleitorado, e que é de "mandar calar" qualquer partido, passo a expressão.

O mais para além disto é o senso comum que tem faltado a todos, situação que Cavaco Silva não deixará de aproveitar para reforçar o seu lugar na História como o político português mais votado de toda essa "chatice" a que se chama democracia; um regime cujo paradigma é, precisamente, a dúvida como ponto de partida para o exercício do poder. Se repararem com atenção na declaração pós-eleições de Cavaco Silva (que imediatamente enfatizou a questão dos compromissos históricos internacionais, como o euro ou a NATO), e a ela somarem o tom com que o Gabinete da Presidência (esta quinta-feira, dia em que entrego este texto) lembrou que, "nos termos da Constituição, o Presidente da República não se pode substituir aos partidos no processo de formação do Governo", temos uma síntese eloquente daquilo que será a marca histórica que Cavaco quer deixar: a do homem suprapartidário.

Recordam-se do tabu original sobre a sua primeira candidatura? E quem se lembra da forma como activamente, e já na campanha, Cavaco Silva se autodescreveu como "não sendo político profissional"? O trajecto de inscrição de Aníbal Cavaco Silva como alguém acima do regime começou há muitos anos; em particular, acima do seu próprio partido, o PSD (não sei se é militante, mas isso é historicamente irrelevante).

O desprezo pela política que Cavaco faz, com prudência néscia e acutilância às vezes automessianizantes, bem sei, é "snob". Cavaco pertence a este regime, e o desespero de causa com que os seus detractores por vezes o tratam revela muita da falta de real entendimento do que é a relação dos portugueses com o poder pós-74 - ou a falta de relação, se calhar.

Cavaco é um homem da política "hardline", que não se ocupa de causas, mas de efeitos; goste-se ou não, ele encaixa no conceito de segurança de um país que viveu salazarismo, primavera marcelista, descolonização, adesão à UE e ao euro em pouco mais de 50 anos. Em fim de mandato - e de carreira -, Cavaco não perderia nunca a oportunidade de se revelar essencial, fechando com chave de ouro 20 anos de "poder paternal". Esse é, também, o processo político que estamos a viver. Muitos tentaram, pouco conseguiram: Cavaco não só se fez providencial como bem-sucedido.

Assim fechamos a segunda semana depois das legislativas, à espera, como gente que depende - e muito - do que em Belém se passará nos próximos dias. Cavaco não esquecerá os detalhes da História, da qual sairá sempre bem; é que qualquer mal-estar advindo da sua decisão não poderá deixar de ser lido por todos os agentes do poder - media incluídos - do que, em nome do regime, ainda está por fazer.

Não, não são os mercados que nos governam, somos nós. "O Presidente da República reafirma que as decisões que vier a tomar transmiti-las-á directamente aos Portugueses", constava na declaração de hoje; Cavaco é a encarnação da providencial "segurança de todos", numa democracia-TV que só sabe ser popular - e é essa mesma democracia que dá voz ao António, à Catarina, ao Jerónimo e ao Nicolau.


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