Opinião
Todas as cautelas no processo de privatização da TAP são necessárias
No seu habitual espaço de opinião na SIC, o comentador Marques Mendes fala sobre o veto de Marcelo Rebelo de Sousa ao decreto de privatização da TAP, do OE 2024, da situação no Médio Oriente, entre outros temas.
ACORDO COM OS MÉDICOS?
- Podemos estar na iminência de um acordo entre o Governo e os médicos. Pode não ser hoje, mas é inevitável nos próximos dias. Politicamente, se isso acontecer, será bom para todos.
- Bom para o País e para o setor da Saúde. Ganha normalidade e tranquilidade.
- Bom e justo para os médicos. Ficam mais motivados e a sua carreira ganha atratividade.
- Bom e importante para o Ministro e para o Governo. O Ministro sai vitorioso. E o Governo resolve um dos seus maiores calcanhares de Aquiles.
- O Governo bem pode agradecer a Fernando Araújo a grande ajuda que ele deu esta semana. A entrevista dada ao Pública gerou muita polémica e num ponto ou noutro, sobretudo ao falar da ética dos médicos, o CEO do Serviço Nacional de Saúde (SNS) exagerou. Mas, na mensagem essencial, a entrevista foi importante para pressionar um acordo e dramatizar a sua necessidade. Fernando Araújo jogou nesta entrevista a sua credibilidade.
- Antes deste acordo, ao longo da semana, especulou-se em torno da ideia da remodelação do Ministro da Saúde. Alguns órgãos de informação chegaram mesmo a colocar Pizarro como candidato a remodelável. Um exagero.
- Manuel Pizarro tem um peso político tão forte junto do primeiro-ministro que só sai do Governo em 2025 quando for candidato à Câmara Municipal do Porto; tal como Ana Catarina Mendes só sairá em 2024, sendo cabeça de lista do PS ao Parlamento Europeu; ou Duarte Cordeiro só sairá em 2025 para ser provavelmente candidato à Câmara Municipal de Sintra. Em teoria, os Ministros são todos iguais. Na prática, há uns com mais peso político que outros.
O DEBATE DO OE
- A próxima semana será marcada, internamente, pelo debate do Orçamento do Estado (OE). O Governo dirá que é o melhor orçamento de sempre; as oposições dirão que é um OE que não serve o País. Eu diria: nem 8 nem 80; este OE tem aspetos positivos e negativos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
- Recordemos os aspetos mais positivos: um Orçamento sem défice e com redução da dívida em percentagem do PIB; um alívio fiscal no IRS para as classes médias; um aumento das pensões acima da inflação; o aumento, que lhe está associado, do salário mínimo nacional; e a atualização da generalidade das prestações sociais.
- E recordemos também os pontos mais negativos: é, no plano económico, um orçamento sem ambição; um OE onde faltam incentivos à atividade produtiva e à poupança; um orçamento com peso reforçado dos impostos indiretos e com novo aumento da carga fiscal; um orçamento com um excessivo crescimento da despesa pública.
- Politicamente falando, este é um OE com a marca do centro. Por isso mesmo, é mais fácil de ser contestado à esquerda que à direita.
- À esquerda do PS, quer o PCP quer o BE não terão dificuldade de criticar este OE. Sobretudo por causa do excedente orçamental. Estes dois partidos não valorizam muito a questão da dívida e do défice. Assim, é mais cómodo pedir mais despesa e mais apoio para os serviços públicos.
- À direita, a tarefa é mais difícil, sobretudo para o PSD. Primeiro, porque o Governo "tirou" ao PSD a causa das finanças equilibradas; depois, porque o Governo mudou de opinião sobre a dimensão do alívio fiscal no IRS, só para esvaziar as propostas do PSD. O partido não deixa de ter margem de manobra. Mas o caminho é muito estreito.
OS TEMAS DO DEBATE
- O debate do OE não vai ser grande problema para o Governo. Problemas, sim, para o Governo vão ser quatro temas que não têm a ver diretamente com o OE.
- Investimento público: o Governo vai prometer que agora, finalmente, é que o investimento público vai acelerar. Essa promessa, todos os anos repetida, nunca tem sido cumprida. Ao longo dos oito anos de António Costa, o Governo não executou 6,6 mil milhões de euros de investimento público.
- Saúde: o Governo vai explicar que nunca houve tanto dinheiro na saúde. Só que faltam resultados: "perderam-se" 1,7 mil milhões de euros de investimento; destruíram-se as PPP, até elogiadas por autarcas PS: "deixaram-se" fugir médicos para o privado e para o estrangeiro; aumentaram as listas de espera de cirurgias e o número de utentes sem médico de família.
- Habitação: são vários os dramas acumulados ao longo de oito anos de Governo. Temos das casas mais caras da Europa; as rendas são incomportáveis; as prestações ao banco são um pesadelo mensal; e os atrasos na execução do PRR, na parte da habitação preocupam.
- A emigração de jovens talentos: uma emigração que começou no tempo da troika e que António Costa prometeu acabar. Não só não acabou como o padrão de emigração se agravou. Antes, no tempo da troika, emigravam pessoas com baixas qualificações. Agora, cerca de 50% dos que emigram são licenciados. Estamos a perder talento.
- Finalmente, nos temas próprios do OE, a única grande dor de cabeça para o Governo, vem de onde menos se esperava: o IUC para os carros antigos. É impossível o assunto não ser tratado. São já quase 400 mil pessoas a assinarem uma petição contra este agravamento fiscal. A sociedade mobilizou-se a sério.
O DISCURSO DE GUTERRES
- Tenho duas a certezas: a primeira é que, se pudesse voltar atrás, António Guterres não teria repetido a frase polémica: "Os abusos do Hamas não surgiram do vácuo"; a segunda é que nada justifica esta campanha completamente exagerada e desproporcionada de Israel contra Guterres.
- A frase da polémica, ainda por cima se desinserida do contexto, não é feliz. Pode dar uma ideia, ainda que errada, de legitimação de um ato terrorista. Ora, um ato terrorista é sempre um ato terrorista. Nunca tem legitimação ou justificação possível.
- A seguir, a campanha de Israel contra o secretário-geral da ONU é de um exagero, de uma arrogância e de um fundamentalismo inaceitáveis. Lendo o discurso na íntegra, vê-se muito bem que António Guterres não só não legitimou o Hamas como condenou veementemente a sua ação. Ele foi claro e categórico: "O sofrimento do povo palestiniano não pode justificar os terríveis ataques do Hamas e o sequestro de pessoas. E esses terríveis ataques não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano". Um pensamento totalmente correto e justo.
- Tenho muito respeito por Israel, pelo povo judeu, por o Estado israelita ser uma democracia e porque tem todo o direito de retaliar em relação ao Hamas. Mas esta atitude desproporcionada do Governo de Israel não é aceitável:
- Primeiro, porque o histórico de Israel em relação à ONU não lhe dá grande autoridade moral e política para atitudes deste género. Israel tem anos de desprezo por Resoluções da ONU.
- Segundo, porque nos últimos anos, com Netanyahu no poder, as elites israelitas cultivaram um padrão muito negativo: a ideia de que são intocáveis, que estão acima de tudo e de todos, acima da crítica, do escrutínio e até do direito internacional. Nada disto é aceitável.
A GUERRA ISRAEL – HAMAS
- Estamos na segunda fase da guerra. A fase que antecede a incursão terrestre. A situação é cada vez mais difícil.
- Primeiro, no plano militar. A incursão terrestre tem sido adiada por quatro razões: primeiro, porque é mais complexa do que inicialmente se previra; depois, porque as pressões dos EUA são grandes; terceiro, porque há divisões na opinião pública com a maioria dos israelitas a defender uma invasão mais tarde; quarto, porque uma decisão precipitada pode desencadear um conflito regional ou até global.
- Segundo, no plano dos reféns. Nunca o Hamas aceitará entregar os 200 reféns. Mesmo em troca dos 6 mil palestinianos presos em Israel. Primeiro, porque os reféns são o único grande trunfo que o Hamas tem na mão para controlar a escalada da guerra e condicionar Israel. Se os libertarem a todos, deixam de ter esse trunfo. Segundo, porque preferem ir libertando a conta-gotas. É a forma de ganharem tempo e de fazerem propaganda.
- Terceiro, no plano humanitário. Esta é a catástrofe das catástrofes. É o inferno na terra. Todos apelam a pausas humanitárias: ONU, UE e Estados Árabes. Mas é tudo em vão. Israel não vai ceder. E a ONU está agora mais fragilizada do que nunca com a postura de Israel.
- No entretanto, um aspeto negativo e outro positivo:
- Negativa é a divisão na UE. Na assembleia geral da ONU, onde se votou uma resolução de trégua humanitária, foi cada um para seu lado. Oito votaram a favor, quatro contra, quinze abstiveram-se. A UE é cada vez mais um anão político. Não tem força política á escala global.
- Pela positiva só mesmo a ação dos EUA. O Presidente Biden tem sido exemplar: moderação, equilíbrio, iniciativa e sentido de responsabilidade. Até no incidente com Guterres deixou Israel a falar sozinho, evitando uma escalada retórica. Imagine-se que neste momento estava Trump no lugar de Biden. Aí o mundo ficava completamente descontrolado e indefeso.
TAP – O VETO DE MARCELO
- É um veto atípico. Diferente do que é habitual. Não é um veto para impedir a privatização. Bem pelo contrário. É um veto construtivo e clarificador. Para que a privatização decorra com transparência e sem suspeições. Dois exemplos:
- Prevê-se que o Estado possa vender de 51% até 95% do capital. Que é o Governo que decide não há dúvidas. Mas como é que se decide de modo transparente se não há mais qualquer Decreto-Lei? Como se faz o escrutínio de tal decisão, se já não há intervenção do Presidente da República ou da Assembleia da República? É conveniente prever algum mecanismo de controle e acompanhamento.
- Fala-se em contactos com potenciais interessados antes da aprovação do Caderno de Encargos. Contactos informais durante uma privatização são sempre muito delicados. O excesso de informalidade pode ser perigoso e suspeito. Talvez seja útil definir um modelo de registos oficiais de todos os contactos feitos, para que não haja no futuro suspeitas de favorecimento, seja de quem for.
- Todas as cautelas neste processo de privatização são necessárias e bem-vindas. Até por uma última razão não invocada no veto do Presidente da República.
- As avaliações que o Governo mandou fazer da TAP apontam para valores equivalentes a um terço ou um quarto do montante que o Governo injetou na companhia. Mil milhões de euros ou até menos.
- Assim, o valor da venda da TAP poderá ficar muito aquém do valor que o Estado lá meteu. O que vai suscitar grande polémica. Mais uma razão para o Governo não acrescentar novos problemas de transparência aqueles que já vai ter com o valor da alienação.