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29 de Outubro de 2023 às 21:39

Todas as cautelas no processo de privatização da TAP são necessárias

No seu habitual espaço de opinião na SIC, o comentador Marques Mendes fala sobre o veto de Marcelo Rebelo de Sousa ao decreto de privatização da TAP, do OE 2024, da situação no Médio Oriente, entre outros temas.

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ACORDO COM OS MÉDICOS?

  1. Podemos estar na iminência de um acordo entre o Governo e os médicos. Pode não ser hoje, mas é inevitável nos próximos dias. Politicamente, se isso acontecer, será bom para todos.
  • Bom para o País e para o setor da Saúde. Ganha normalidade e tranquilidade.
  • Bom e justo para os médicos. Ficam mais motivados e a sua carreira ganha atratividade.
  • Bom e importante para o Ministro e para o Governo. O Ministro sai vitorioso. E o Governo resolve um dos seus maiores calcanhares de Aquiles.
  1. O Governo bem pode agradecer a Fernando Araújo a grande ajuda que ele deu esta semana. A entrevista dada ao Pública gerou muita polémica e num ponto ou noutro, sobretudo ao falar da ética dos médicos, o CEO do Serviço Nacional de Saúde (SNS) exagerou. Mas, na mensagem essencial, a entrevista foi importante para pressionar um acordo e dramatizar a sua necessidade. Fernando Araújo jogou nesta entrevista a sua credibilidade.
  1. Antes deste acordo, ao longo da semana, especulou-se em torno da ideia da remodelação do Ministro da Saúde. Alguns órgãos de informação chegaram mesmo a colocar Pizarro como candidato a remodelável. Um exagero.
  • Manuel Pizarro tem um peso político tão forte junto do primeiro-ministro que só sai do Governo em 2025 quando for candidato à Câmara Municipal do Porto; tal como Ana Catarina Mendes só sairá em 2024, sendo cabeça de lista do PS ao Parlamento Europeu; ou Duarte Cordeiro só sairá em 2025 para ser provavelmente candidato à Câmara Municipal de Sintra. Em teoria, os Ministros são todos iguais. Na prática, há uns com mais peso político que outros.

 

O DEBATE DO OE

  1. A próxima semana será marcada, internamente, pelo debate do Orçamento do Estado (OE). O Governo dirá que é o melhor orçamento de sempre; as oposições dirão que é um OE que não serve o País. Eu diria: nem 8 nem 80; este OE tem aspetos positivos e negativos. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.
  • Recordemos os aspetos mais positivos: um Orçamento sem défice e com redução da dívida em percentagem do PIB; um alívio fiscal no IRS para as classes médias; um aumento das pensões acima da inflação; o aumento, que lhe está associado, do salário mínimo nacional; e a atualização da generalidade das prestações sociais.
  • E recordemos também os pontos mais negativos: é, no plano económico, um orçamento sem ambição; um OE onde faltam incentivos à atividade produtiva e à poupança; um orçamento com peso reforçado dos impostos indiretos e com novo aumento da carga fiscal; um orçamento com um excessivo crescimento da despesa pública.
  1. Politicamente falando, este é um OE com a marca do centro. Por isso mesmo, é mais fácil de ser contestado à esquerda que à direita.
  • À esquerda do PS, quer o PCP quer o BE não terão dificuldade de criticar este OE. Sobretudo por causa do excedente orçamental. Estes dois partidos não valorizam muito a questão da dívida e do défice. Assim, é mais cómodo pedir mais despesa e mais apoio para os serviços públicos.
  • À direita, a tarefa é mais difícil, sobretudo para o PSD. Primeiro, porque o Governo "tirou" ao PSD a causa das finanças equilibradas; depois, porque o Governo mudou de opinião sobre a dimensão do alívio fiscal no IRS, só para esvaziar as propostas do PSD. O partido não deixa de ter margem de manobra. Mas o caminho é muito estreito.

 

OS TEMAS DO DEBATE

  1. O debate do OE não vai ser grande problema para o Governo. Problemas, sim, para o Governo vão ser quatro temas que não têm a ver diretamente com o OE.
  • Investimento público: o Governo vai prometer que agora, finalmente, é que o investimento público vai acelerar. Essa promessa, todos os anos repetida, nunca tem sido cumprida. Ao longo dos oito anos de António Costa, o Governo não executou 6,6 mil milhões de euros de investimento público.
  • Saúde: o Governo vai explicar que nunca houve tanto dinheiro na saúde. Só que faltam resultados: "perderam-se" 1,7 mil milhões de euros de investimento; destruíram-se as PPP, até elogiadas por autarcas PS: "deixaram-se" fugir médicos para o privado e para o estrangeiro; aumentaram as listas de espera de cirurgias e o número de utentes sem médico de família.
  • Habitação: são vários os dramas acumulados ao longo de oito anos de Governo. Temos das casas mais caras da Europa; as rendas são incomportáveis; as prestações ao banco são um pesadelo mensal; e os atrasos na execução do PRR, na parte da habitação preocupam.
  • A emigração de jovens talentos: uma emigração que começou no tempo da troika e que António Costa prometeu acabar. Não só não acabou como o padrão de emigração se agravou. Antes, no tempo da troika, emigravam pessoas com baixas qualificações. Agora, cerca de 50% dos que emigram são licenciados. Estamos a perder talento.
  1. Finalmente, nos temas próprios do OE, a única grande dor de cabeça para o Governo, vem de onde menos se esperava: o IUC para os carros antigos. É impossível o assunto não ser tratado. São já quase 400 mil pessoas a assinarem uma petição contra este agravamento fiscal. A sociedade mobilizou-se a sério.


O DISCURSO DE GUTERRES
 

  1. Tenho duas a certezas: a primeira é que, se pudesse voltar atrás, António Guterres não teria repetido a frase polémica: "Os abusos do Hamas não surgiram do vácuo"; a segunda é que nada justifica esta campanha completamente exagerada e desproporcionada de Israel contra Guterres.
  • A frase da polémica, ainda por cima se desinserida do contexto, não é feliz. Pode dar uma ideia, ainda que errada, de legitimação de um ato terrorista. Ora, um ato terrorista é sempre um ato terrorista. Nunca tem legitimação ou justificação possível.
  • A seguir, a campanha de Israel contra o secretário-geral da ONU é de um exagero, de uma arrogância e de um fundamentalismo inaceitáveis. Lendo o discurso na íntegra, vê-se muito bem que António Guterres não só não legitimou o Hamas como condenou veementemente a sua ação. Ele foi claro e categórico: "O sofrimento do povo palestiniano não pode justificar os terríveis ataques do Hamas e o sequestro de pessoas. E esses terríveis ataques não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano". Um pensamento totalmente correto e justo. 
  1. Tenho muito respeito por Israel, pelo povo judeu, por o Estado israelita ser uma democracia e porque tem todo o direito de retaliar em relação ao Hamas. Mas esta atitude desproporcionada do Governo de Israel não é aceitável:
  • Primeiro, porque o histórico de Israel em relação à ONU não lhe dá grande autoridade moral e política para atitudes deste género. Israel tem anos de desprezo por Resoluções da ONU.
  • Segundo, porque nos últimos anos, com Netanyahu no poder, as elites israelitas cultivaram um padrão muito negativo: a ideia de que são intocáveis, que estão acima de tudo e de todos, acima da crítica, do escrutínio e até do direito internacional. Nada disto é aceitável.

 

A GUERRA ISRAEL – HAMAS

  1. Estamos na segunda fase da guerra. A fase que antecede a incursão terrestre. A situação é cada vez mais difícil.
  • Primeiro, no plano militar. A incursão terrestre tem sido adiada por quatro razões: primeiro, porque é mais complexa do que inicialmente se previra; depois, porque as pressões dos EUA são grandes; terceiro, porque há divisões na opinião pública com a maioria dos israelitas a defender uma invasão mais tarde; quarto, porque uma decisão precipitada pode desencadear um conflito regional ou até global.
  • Segundo, no plano dos reféns. Nunca o Hamas aceitará entregar os 200 reféns. Mesmo em troca dos 6 mil palestinianos presos em Israel. Primeiro, porque os reféns são o único grande trunfo que o Hamas tem na mão para controlar a escalada da guerra e condicionar Israel. Se os libertarem a todos, deixam de ter esse trunfo. Segundo, porque preferem ir libertando a conta-gotas. É a forma de ganharem tempo e de fazerem propaganda.
  • Terceiro, no plano humanitário. Esta é a catástrofe das catástrofes. É o inferno na terra. Todos apelam a pausas humanitárias: ONU, UE e Estados Árabes. Mas é tudo em vão. Israel não vai ceder. E a ONU está agora mais fragilizada do que nunca com a postura de Israel.
  1. No entretanto, um aspeto negativo e outro positivo:
  • Negativa é a divisão na UE. Na assembleia geral da ONU, onde se votou uma resolução de trégua humanitária, foi cada um para seu lado. Oito votaram a favor, quatro contra, quinze abstiveram-se. A UE é cada vez mais um anão político. Não tem força política á escala global.
  • Pela positiva só mesmo a ação dos EUA. O Presidente Biden tem sido exemplar: moderação, equilíbrio, iniciativa e sentido de responsabilidade. Até no incidente com Guterres deixou Israel a falar sozinho, evitando uma escalada retórica. Imagine-se que neste momento estava Trump no lugar de Biden. Aí o mundo ficava completamente descontrolado e indefeso.

 

TAP – O VETO DE MARCELO

 

  1. É um veto atípico. Diferente do que é habitual. Não é um veto para impedir a privatização. Bem pelo contrário. É um veto construtivo e clarificador. Para que a privatização decorra com transparência e sem suspeições. Dois exemplos:
  • Prevê-se que o Estado possa vender de 51% até 95% do capital. Que é o Governo que decide não há dúvidas. Mas como é que se decide de modo transparente se não há mais qualquer Decreto-Lei? Como se faz o escrutínio de tal decisão, se já não há intervenção do Presidente da República ou da Assembleia da República? É conveniente prever algum mecanismo de controle e acompanhamento.
  • Fala-se em contactos com potenciais interessados antes da aprovação do Caderno de Encargos. Contactos informais durante uma privatização são sempre muito delicados. O excesso de informalidade pode ser perigoso e suspeito. Talvez seja útil definir um modelo de registos oficiais de todos os contactos feitos, para que não haja no futuro suspeitas de favorecimento, seja de quem for.
  1. Todas as cautelas neste processo de privatização são necessárias e bem-vindas. Até por uma última razão não invocada no veto do Presidente da República.
  • As avaliações que o Governo mandou fazer da TAP apontam para valores equivalentes a um terço ou um quarto do montante que o Governo injetou na companhia. Mil milhões de euros ou até menos.
  • Assim, o valor da venda da TAP poderá ficar muito aquém do valor que o Estado lá meteu. O que vai suscitar grande polémica. Mais uma razão para o Governo não acrescentar novos problemas de transparência aqueles que já vai ter com o valor da alienação.
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