Opinião
Marques Mendes: Plano económico e social do Governo "é uma desilusão"
As notas da semana de Marques Mendes no seu comentário na SIC. O comentador fala sobre o plano de desconfinamento, os apoios económicos e sociais e a posse de Marcelo, entre outros temas.
O DESCONFINAMENTO
- Trata-se de um plano equilibrado, prudente e cauteloso, diferente do de 2020, com quatro aspectos essenciais:
- Está alicerçado em orientações científicas. Mas o plano científico é um guia e não uma Bíblia. É assim que deve ser. Além dos critérios científicos há outros a considerar. É o caso das escolas. O Governo foi além dos cientistas e fez bem.
- O desconfinamento é muito suave, gradual e com várias fases indicativas. O objectivo é não dar sinais errados e não deitar tudo a perder.
- O Governo anunciou para a Páscoa o que devia ter feito no Natal – a proibição de circulação entre concelhos. Aprendeu com o erro do passado. E a Igreja Católica ajudou, suspendendo procissões e visitas pascais.
- Finalmente, o plano tem dois travões: necessários e transparentes (o factor R e o número de novos casos). É a grande e fundamental diferença em relação ao desconfinamento anterior. Se aqueles indicadores forem ultrapassados, o acelerador é substituído pelo travão. Boa decisão.
- Posto isto, com que números vamos desconfinar? Ao dia de hoje com 96 novos casos a 14 dias por 100 mil habitantes; e com o Rt em 0,83.
- Para o futuro: há muitos riscos e pode haver recuos no desconfinamento:
- Há o risco do relaxamento – No momento em que se desconfina, as pessoas começam a facilitar. Mais contactos levam a mais contágios.
- Há o risco das novas variantes do vírus. Mais contagiosas que as primeiras.
- Há o risco da abertura de fronteiras, quando ocorrer, sobretudo das ligações com o Brasil, que está transformado em autêntica calamidade.
- Há o risco de falhanços no rastreio e na testagem. Embora, para já, haja uma boa notícia. Vai arrancar finalmente na próxima semana a campanha massiva de testagem no país. A coordenação é do Presidente do INSA e o plano envolve, entre outros, na task force a criar, a DGS, o INEM, a CVP, vários Ministérios, farmácias e grandes empresas. A decisão está tomada.
MARCELO E COSTA DIVERGEM?
- Como se viu pelas declarações de um e de outro, acho que a divergência entre PR e PM é mais especulação que realidade. Mas, atenção: não vale a pena fingir ou disfarçar. Na questão da pandemia, sempre houve sensibilidades diferentes entre o PR e o PM. Desde o primeiro Estado de Emergência. Marcelo mais ao lado do pilar da saúde. Costa mais ao lado da vertente da economia. Mas daí até haver uma divergência de fundo vai uma diferença enorme. Não exageremos.
- Posto isto, sejamos claros: PR e PM não têm de estar sempre de acordo em tudo. Se tal acontecesse, seria mau para a democracia. Seguramente que ao longo destes próximos anos vão ter divergências. Daí não vem mal ao mundo. O que não me parece é que façam sentido divergências em torno do combate à pandemia:
- Primeiro, não fazem qualquer sentido, porque até foi o PR que definiu objectivos para o desconfinamento e eles foram basicamente alcançados.
- Depois, não fazem qualquer sentido por uma razão de confiança. No tempo de crise em que vivemos, as pessoas precisam de confiar e acreditar. E um dos factores de maior confiança é a sintonia entre PR e PM. Qualquer sinal de divisão entre órgãos de soberania, nesta matéria, gera desconfiança e insegurança. As diferenças de opinião devem ser limadas em privado.
A VACINAÇÃO
- Boas notícias cá dentro – A vacinação no terreno corre bem. Dois exemplos:
- Vacinação por grupos etários – Constata-se que 47% dos portugueses com 80 ou mais anos já tomaram pelo menos uma dose da vacina e que 10% já concluíram mesmo o processo de vacinação, o que corresponde ao cumprimento das prioridades definidas.
- Vacinação por regiões – O processo de vacinação decorre com equilíbrio nas várias regiões, com o Centro e o Alentejo em ligeira vantagem.
- De fora só chegam más notícias.
- Primeiro: a teoria do "duche escocês" aplica-se à vacina da Janssen. Uma boa notícia, a aprovação pela EMA, "compensada" com uma má notícia. A farmacêutica anunciou ao mercado atrasos na produção e distribuição.
- Segundo: o drama da Astrazeneca. A empresa anunciou novos atrasos na distribuição de vacinas. Depois, há países que a suspenderam por razões de segurança. O Infarmed já disse que o problema não se coloca em Portugal. Mas, atenção: é preciso repetir a explicação, uma, duas, três vezes, de forma esclarecedora. Há o risco de as pessoas se recusarem a receber a vacina.
- Finalmente: o fiasco da UE. Esta semana, este fiasco ficou mais visível face aos avanços nos EUA. Biden anunciou que a 4 de Julho a população dos EUA estará vacinada e que tudo volta ao normal. Na UE nem no final de Verão é garantido.
- Portugal tem responsabilidades. Porque exerce a presidência da UE. Tínhamos a obrigação, enquanto presidência, de já ter tomado alguma iniciativa, de ter colocado o assunto na agenda europeia.
- O MNE escreve no Expresso um artigo a mostrar os sucessos da presidência portuguesa nestes primeiros meses. Mas não aborda aquele que é o maior problema da UE neste semestre. Para o Governo só conta a propaganda! Quando há um berbicacho foge dele como o diabo da cruz!
APOIOS ECONÓMICOS E SOCIAIS
Ao contrário do plano de desconfinamento, o plano económico e social é uma desilusão. Tirando o lay off e os pagamentos de impostos a prestações, é tudo muito insuficiente e muito burocrático. Este plano tem três pecados capitais:
- O primeiro é o problema das moratórias. O grosso das moratórias acaba em Setembro. Se nada for feito, chegamos lá e os planos de pagamentos aos bancos, actualmente suspensos, são retomados. E há muitas empresas, sobretudo dos sectores mais atingidos pela crise (hotelaria, restauração e comércio), que não vão ter possibilidade de pagar.
- Claro que a decisão de prorrogar moratórias não é nacional. É europeia (EBA). Mas Portugal devia estar a negociar esta matéria no quadro europeu. Porque a questão interessa a vários países. E temos a prerrogativa de exercer a presidência da UE.
- Segundo pecado capital: a insuficiência dos apoios económicos directos. São uma gota no oceano. Em Portugal , os apoios directos representam apenas cerca de 11,2% do PIB, em contraste com 23,5% em França, 38,9% na Alemanha e 42,3% em Itália. Querer poupar agora vai ter consequências sérias no futuro. Perdem-se empresas, que podem ir à falência e gasta-se muito mais em subsídios de desemprego. Chama-se a isto falta de visão estratégica.
- Terceiro pecado capital: a burocracia e a ineficácia da máquina do Estado. Uma coisa é o anúncio de medidas. Coisa diferente é o dinheiro chegar às empresas. Ora, a verdade é que as queixas são mais do que muitas: empresas e pessoas queixam-se que os apoios ou não chegam ou chegam tarde e a más horas. É tudo lento, confuso e burocrático.
A POSSE DE MARCELO
- Um excelente discurso do PR com duas apostas sérias e um sinal de divergência com o Governo:
- É um discurso de esperança e ambição. É preciso cortar com o país anestesiado, condicionado e resignado que temos.
- É um discurso de forte aposta no combate às desigualdades sociais. Depois desta crise, o país ficará mais desigual. É preciso agir antes que seja tarde.
- A divergência com o Governo está traduzido na ideia de que não chega recuperar e regressar a 2019. É uma divergência em torno do PRR.
- O Governo fala em regressar a 2019, ao tempo pré-crise. O PR diz que tal não chega. É preciso crescer mais do que antes da crise.
- O PR tem toda a razão. Em 2019, tal como em 2017 e 2018, Portugal cresceu pouco. Apesar de ter crescido acima da média da UE, foi ultrapassado pela Estónia e Lituânia.
- Se continuamos a crescer ao nível de 2019, acabamos a ser ultrapassados no futuro por mais países – Polónia, Hungria, Eslováquia e Roménia estão à espreita.
- Esta é a divergência que vale a pena assumir. É uma divergência construtiva, virtuosa e estratégica. Para evitar que a bazuca europeia seja uma oportunidade perdida.
A RASPADINHA
- Francisco Assis lançou na semana passada a questão: não é imoral lançar uma nova raspadinha, desta vez para financiar o património cultural? Não faz sentido estudar o impacto social de mais um jogo? Eu acho que ele tem toda a razão. Para muita gente, a Raspadinha está transformada num perigoso vício nacional. Comecemos pelos números:
- Todos os Jogos da Santa Casa geram em conjunto360 mil milhões de euros de receitas. Só a Raspadinha vale mais que todos eles juntos.
- Há 10 anos, a Raspadinha gerava 100 milhões de euros de receita. No fim de 2019 a receita é de 1.7 mil milhões. Dezassete vezes mais numa década.
- Aqui chegados, há três problemas sérios a debater:
- Primeiro, um problema social. A Raspadinha é um vício perigoso que atinge sobretudo os mais pobres. Há que estabelecer limites. Doutra forma, é o Estado a fomentar a pobreza em vez de a combater.
- Segundo, um problema ético e moral. Faz sentido que sejam os mais pobres e carenciados a financiar o património cultural? Não faz.
- Terceiro, um precedente grave. Agora, são os pobres a financiar o património cultural. E, no futuro, vamos ter mais uma Raspadinha para financiar a luta contra o cancro? Ou para financiar o combate à pobreza infantil? Se a moda pega, caímos no exagero, no disparate, na imoralidade.