Opinião
Marques Mendes: "Centeno no BdP vai fazer a vida negra ao Governo"
As notas de Marques Mendes no seu comentário semanal na SIC. O comentador fala sobre o homicídio de Valentina, as tensões entre Centeno e Costa e o desconfinamento, entre outros temas.
MORTE DE VALENTINA – O ESTADO FALHOU?
1. O país ficou chocado esta semana com a morte de uma criança, a Valentina. Um crime monstruoso, que a justiça se encarregará de investigar, julgar e punir. Mas há, ao mesmo tempo, uma pergunta que se impõe fazer: e o Estado fez ou não fez tudo para proteger esta criança? A Comissão de Protecção de Menores agiu bem ou agiu com negligência?
2. Há factos que suscitam dúvidas e estas devem ser esclarecidas:
a) O pai desta criança partilhou-a a contragosto e por imposição judicial;
b) A relação entre pai e filha nunca foi fácil;
c) A Valentina chegou a fugir da casa do pai;
d) Depoimentos de populares dizem que pai e madrasta a usavam e manipulavam;
e) A CPCJ sinalizou o caso, abriu um processo em Abril de 2019 e arquivou-o logo a seguir.
3. Aqui chegados, é preciso dizer: claro que não foi o Estado nem foram os dirigentes das comissões de protecção de menores que mataram esta criança. Não são eles os responsáveis pelo crime. Mas falta averiguar uma coisa essencial: o inquérito que foi aberto em Abril de 2019 devia ter sido arquivado logo a seguir? Este inquérito foi mesmo levado a sério ou foi um mero pró-forma para cumprir uma regra burocrática? O Estado foi negligente ou não?
São dúvidas a mais e certezas a menos. O Governo deveria determinar a abertura de uma investigação. Para esclarecer este caso e prevenir casos futuros.
PIB BAIXA, POBREZA AUMENTA
1. Os números do PIB do 1º trimestre provam duas coisas: primeiro, que a crise vai ser mais severa que as previsões; segundo, que o desemprego, a fome e a pobreza estão a agravar-se. Já tínhamos uma pobreza estrutural forte: 2 milhões de pessoas (1/5 da população) a viver com menos de 450€/mês. Agora a situação está a agravar-se.
2. Falei com responsáveis da Caritas, do Banco Alimentar e de outras instituições. A crise é ainda mais séria que a anterior:
a) Primeiro: foi uma crise repentina, surgiu de um dia para o outro, sem aviso, sem as pessoas e as instituições terem tempo sequer para se prepararem;
b) Segundo: é uma crise de uma intensidade brutal. De um dia para o outro, muitas pessoas tiveram perdas brutais de rendimentos e não tinham qualquer almofada para compensar;
c) Terceiro: é uma crise transversal. Toca a todos, mas é brutal nas pessoas com salários baixos e em classes médias que, de repente, caem na miséria;
d) Quarto: é uma crise que fomenta uma pobreza envergonhada. Há pessoas com cursos superiores que, de repente, ficam sem protecção e têm vergonha de exporem a sua situação;
e) Quinto: ao contrário da crise anterior, o que as pessoas mais pedem agora não é um emprego. É alimentação. Isto é arrepiante.
3. Todos exigimos, e bem, apoio para as empresas, para a sua recuperação económica e para a retoma do emprego. Mas é tempo de exigirmos também um grande Programa de Emergência Social. O tema do combate à fome e da pobreza tem de entrar na agenda política nacional. Não se reconstrói o futuro sem responder aos dramas sociais do presente.
O REGRESSO AO NORMAL
1. O desconfinamento da primeira quinzena foi muito contido. A partir de amanhã é que vai ser a sério – escolas, creches, restaurantes, lares da terceira idade.
Há que dizer que estamos no fio da navalha. Por um lado, temos de reactivar a economia. Os números do primeiro trimestre são um "murro no estômago". A quebra económica foi muito maior do que se previa. Se não reactivamos a economia, o país não morre da doença mas morre da cura.
Por outro lado, temos de fazer este regresso com muita cautela. A epidemia está controlada mas não está ultrapassada. Qualquer exagero ou indisciplina pode deitar tudo a perder.
Finalmente, temos de combater o medo. O medo só serve para paralisar a sociedade. Agir com cautela é exigência de bom senso. Agir com medo é histeria sem sentido.
2. No entretanto, o Governo resolveu bem algumas situações críticas:
· Nas creches – O Governo fez bem em flexibilizar as regras inicialmente definidas. É preferível ter regras flexíveis que são cumpridas a ter regras rígidas que ninguém consegue aplicar.
· Nos lares para idosos – Finalmente há uma luz ao fundo do túnel. Os idosos não podiam ficar eternamente num ghetto. Mas a abertura tem mesmo que ser muito cautelosa. Estamos numa área de risco.
· No acesso às praias – As regras anunciadas são mais equilibradas. É preciso saber conciliar: autoridade do Estado; responsabilidade individual; direito das pessoas a usufruir do prazer de serem felizes.
O CONFLITO COSTA/CENTENO
1. Primeiro: não me surpreende este conflito público entre primeiro-ministro e ministro das Finanças. O que me surpreende é ter acontecido só agora. Desde que Mário Centeno foi para Presidente do Eurogrupo, ambos andam em rota de colisão. É uma guerra de poder. Centeno porque lhe subiu o poder à cabeça e quer mandar mais que o PM. António Costa porque não suporta este desafio. Nenhum PM suporta!!
2. Segundo: neste episódio que durou uma semana ambos estiveram mal, Centeno e Costa. Um e outro não tiveram sentido de Estado. Em vez de se focarem na pandemia, na retoma económica e nos problemas reais do país, envolveram-se numa trica política sem nível e sem sentido. Saem ambos mal.
3. Terceiro: mesmo assim, as responsabilidades não são iguais.
a) Centeno é o maior culpado. Tem razão na questão de fundo: não é preciso qualquer auditoria para pagar os 850 milhões ao NB. Mas perdeu a razão que tinha, logo a seguir. Foi desleal com o PM. E foi desleal duas vezes.
· Foi desleal ao não falar com o PM depois de ele ter feito a exigência da auditoria. Teve 15 dias para lhe explicar que estava errado. Era o que devia ter feito em privado em vez de o desautorizar em público.
· Foi desleal, segunda vez, na entrevista à TSF e na audição parlamentar. Ao dizer que mais grave do que a falha de comunicação era falhar o pagamento ao Novo Banco. Na prática, estava a insinuar que o caminho defendido pelo PM seria irresponsável. Isto não se faz.
b) António Costa também tem culpa. Inventou um pretexto para não assumir a questão do pagamento ao Novo Banco. Pode ser um pretexto muito popular mas não é verdadeiro. De um PM espera-se verdade e não demagogia.
c) Finalmente, tinha sido preferível o PR não ter comentado esta divergência dentro do Governo. Mas é o seu estilo. Não surpreende. Foi com este estilo que ganhou eleições e é com ele que está em alta nas sondagens.
CENTENO SAI DO GOVERNO?
1. Mário Centeno vai sair do Governo até ao Verão. Mas não é por causa do episódio desta semana. A saída do MF está combinada com o PM desde, pelo menos, o início do ano.
a) Mário Centeno há muito que quer sair do Governo por razões estritamente pessoais. Não é por razões políticas.
b) António Costa, num primeiro momento, tentou demovê-lo. Mais tarde, aceitou a ideia, porque está politicamente farto de Mário Centeno.
2. Quanto ao futuro, há três questões essenciais:
a) Primeiro: é provável que Mário Centeno vá para o BdP. Ele queria mais. Queria um cargo internacional de relevo. Mas não há. O que sobra é o Banco de Portugal. É poucochinho mas é o que há!
b) Segundo: para António Costa a ida de Centeno para o BdP vai ser um problema. Centeno vai fazer a vida negra ao Governo. Ele está ferido no seu orgulho; e debaixo da sua aparente bonomia está uma pessoa difícil e com instintos vingativos.
c) Finalmente: António Costa vai ter um outro problema. A saída de Centeno, do ponto de vista pessoal, é um alívio para o PM. Mas, do ponto de vista político, é uma perda enorme. Centeno tem sido o maior trunfo de Costa no Governo. Suceder-lhe é fácil. Substituí-lo é mais difícil.
3. Acresce que nenhum dos nomes que circulam é solução. Mourinho Félix não tem qualquer hipótese. É a cópia de Centeno. Siza Vieira também é difícil. Sair da Economia para as Finanças seria perder um bom Ministro da Economia sem ter a certeza de ganhar um bom MF. E juntar Economia com Finanças já no passado foi o desastre que se viu. O PM vai ter de inventar outro amigo!
COSTA APOIA MARCELO
Pode criticar-se a forma, o local e o momento para António Costa declarar o seu apoio à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. É tudo pouco ortodoxo e até criticável. Mas o que fica para o futuro é que o PM conseguiu o que queria:
1. Primeiro: dar o seu apoio pessoal ao Presidente. Há muito que tinha essa ideia na cabeça. Fê-lo agora porque lhe dava jeito: para desviar as atenções do caso Centeno; e sair-se bem aos olhos dos portugueses. As últimas sondagens mostram que Marcelo Rebelo de Sousa tem um apoio enorme no eleitorado do PS.
2. Segundo: matar a ideia de qualquer candidato presidencial da área do PS. É o caso de Ana Gomes. O erro que Ana Gomes cometeu foi não ter avançado com a sua candidatura há 3 meses. Aí seria o pânico para António Costa. Agora, perdeu espaço e condições.
3. Terceiro: reduzir ao mínimo qualquer tensão no PS em torno da questão presidencial. Claro que esta não é ainda a posição do PS. Mas a partir de agora isso não é muito relevante. Até porque não haverá Congresso para discutir Presidenciais. Alguns como Francisco Assis até podem criticar. Assis tem alguma razão. Mas nesta questão não será levado muito a sério – ele está em colisão com António Costa por ter ficado fora do PE, da AR ou do Governo. Para Assis, a questão presidencial é um pretexto para "entalar" Costa.
Em conclusão: António Costa fez o que queria – seguir o exemplo de Cavaco Silva em 1991 em relação a Mário Soares.