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Manuela Arcanjo - Economista 14 de Fevereiro de 2019 às 21:03

Saúde: a instabilidade total

Para além da greve cirúrgica dos enfermeiros, já aqui discutida e que está longe de uma resolução, temos assistido nas últimas semanas ao avolumar de problemas com direito a uma mediatização diária.

Nada acontece por acaso. Um dos exemplos foi o alarido sobre uma iniciativa que teria sido desnecessária para um governo sem maioria absoluta e, pior, a poucos meses de eleições: a discussão de uma nova Lei de Bases da Saúde. Defendo, desde sempre, a centralidade do SNS no sistema de saúde e uma complementaridade, sempre que necessária, com os sectores privado e social. Ao Estado compete decidir os serviços a contratualizar, com que entidades e num quadro de regras claras. Mas assistimos, como esperado, ao confronto de várias propostas de lei que divergem numa posição ideológica, isto é, a concorrência entre os potenciais prestadores desde que, claro, seja o Estado o financiador. A mesma fronteira ideológica surgiu esta semana com uma lista de personalidades de vários sectores da sociedade a manifestarem a sua completa oposição à continuação das Parcerias Público-Privadas. Sem pretender ofender ninguém, muitas destas personalidades não têm qualquer ideia da razão do aparecimento das PPP na saúde: construídos muitos hospitais apenas em resposta aos ciclos eleitorais, Portugal esgotou os fundos europeus que teriam permitido melhorar a rede hospitalar já algo decadente nos anos 90. Falo deste tema com o à-vontade de não ser defensora daquele modelo se o Estado não consegue impor contactos justos e controlar quer a qualidade dos serviços, quer a facturação apresentada.

 

Os mesmos requisitos se devem impor na relação entre o Estado e o sector convencionado, seja para a realização de meios auxiliares de diagnóstico de apoio ao SNS, seja nos contratos celebrados com os grupos hospitalares privados na prestação de cuidados aos beneficiários da ADSE. Ao fim de mais de um ano rebentou uma guerra em que, como noutras vertentes da vida, as culpas são partilhadas. A opção de alguns dos maiores grupos rescindirem os contratos com o Estado gerou um clamor por parte de quem, mais uma vez, apenas reage pela ideologia descurando a crueza de uma realidade alimentada por muitos: o definhar do SNS. Mais uma vez, uma declaração de interesse: enquanto titular da pasta de saúde enfrentei dois conflitos, exactamente com o sector privado convencionado!

 

Passemos à análise restrita dos acordos relativos aos beneficiários da ADSE (cerca de 1,2 milhões de indivíduos que pagam 3.5% do seu vencimento - a 14 meses! - para este seguro). Se os acordos cessarem, o SNS tem capacidade de resposta? Não. Mas haverá resposta por parte do sector social e de outros pequenos grupos privados? Não. A realidade é esta e não é sério falar noutros termos. Mas isto significa que o Ministério da Saúde (MS) deve ceder a todas as exigências destes poderosos grupos, poder que lhes foi concedido progressivamente pelo próprio Estado? Claro que não. Mais uma vez, teria sido da competência do MS e da própria ASDE actuar de forma clara e dura sempre que surgiram indícios de menor clareza na facturação, de sinais de discriminação negativa dos beneficiários da ADSE face aos detentores de seguros privados ou, ainda, de situações de indução evidente da procura e de rejeição de tratamento - com o envio para o SNS - de doentes com patologias mais dispendiosas que esgotassem o limite dos seus seguros.

 

Por razões objectivas - envelhecimento da população, tecnologias e medicamentos mais dispendiosos - ou pelo efeito da indução da procura provocado pelos próprios prestadores, a despesa aumentou de forma significativa em 2017. Ora, a actuação só poderia ser a de implementação de regras mais apertadas para os prestadores (fixação de preços máximos) e para os próprios beneficiários (muitos dos quais não se dão conta que muitas consultas de especialidade, imensos exames e até internamentos em ambulatório são propostos não por uma necessidade em saúde mas para alimentar o "negócio"). Ora, algumas das decisões tomadas - como rever a facturação a 4 anos de distância - foram apenas estúpidas. Uma negociação séria, com muitas linhas vermelhas mas também com o bom senso, é imperiosa.

 

Professora universitária (ISEG) e investigadora. Economista

 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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