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O modelo Frankenstein

Portugal entrou no domínio da ficção. Transformou-se num imbróglio. Num sítio mal frequentado, como dizia Almada Negreiros.

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Frankenstein nasceu na ambiguidade da literatura, mas ficou a ideia de que se tratou de uma montagem de bocados de cadáveres. Alguns filmes confirmaram-no mais tarde. Umas pernas aqui, uns braços ali, entranhas e uma cabeça com um cérebro inquieto lá dentro. A criatura, concebida por Mary Shelley foi cerzida sem talento costureiro, acabou cheia de suturas inestéticas e ar de monstro. De seguida levou um tremendo choque elétrico e começou a andar, falar e exprimir as maiores incertezas sobre a sua condição. Ninguém gostou do resultado, nem o próprio, e acabou mal, como consta.


A solução proposta pelo Presidente tem muita parecença com o Frankenstein original. Uma montagem de pedaços, com umas sobras do cadáver do anterior a que se junta agora alguma carne fresca do PS, numa união de partes que não encaixam. Infelizmente o desfecho está escrito. Tal como o mostrengo de Shelley, o Frankenstein de Cavaco também não vai funcionar. Aliás, nem vai ver a luz do dia, pobre coitado.

Fustigado pelas críticas, insultado, acusado de ser um "nobody" político, Cavaco Silva achou por bem tentar a sua chance na literatura. Criou um enredo tão complicado que ninguém entendeu e aproveitou para lançar um apelo à salvação nacional, coisa com muita má fama que normalmente significa suspender a democracia. Depois sentou-se na varanda de Belém à espera. As sessões de terapia de grupo irão certamente ter lugar nos próximos dias, mas o resultado é previsível. Zero. Ou melhor dito, menos que zero, pois mais não fez do que aprofundar e prolongar a crise política.

Mas não sejamos excessivamente críticos. Com a sua insólita declaração televisiva Cavaco Silva teve pelo menos o mérito de clarificar um detalhe. O Presidente não acredita na dupla Coelho/Portas e gostaria mesmo de correr com eles. Na sua perspetiva, são tão incompetentes que nem conseguem fazer uma remodelação minimamente curial. E ficam a prazo até ao próximo Verão, se não for antes. Portas, que provocou a atual trapalhada, deve estar furibundo já que lhe saiu tudo mal. Por instantes imaginou-se, finalmente, a chefiar os destinos do país, a mandar no dinheiro, a dirigir a malfadada reforma do Estado, a falar com a Troika. Hoje passou à condição indigente. Não serve para nada. Já Passos Coelho, que não é dado a grandes exercícios mentais, deve estar profundamente baralhado. Não entende o que se passa. E também não há quem lhe explique. E já agora. De que terão falado Passos e Cavaco em tanta conversa recente? Do tempo que faz?

De súbito estamos portanto num país, surreal, com muitos governos, o defunto, o que nunca chegou a ver a luz do dia e o improvável de apoio tripartido, mas na realidade sem nenhum. Ministros com ordem de marcha continuam a andar de um lado para o outro sem destino ou propósito. Os que iam entrar devem estar sentados ao lado do telefone sem saber o que fazer. Não há tragédia que não dê em comédia. Isto parece um episódio do "Yes Minister".

Agora a sério. Para quem, como Cavaco, acha que a instabilidade política abre portas aos maiores perigos, não conseguiria fazer melhor, ou aliás, pior. Isto é mesmo confuso. Em nome da estabilidade Cavaco lançou o pandemónio. Imagine-se os tais mercados, para quem tudo é assaz linear, que não devem saber se compram ou vendem, se sobem ou baixam as taxas de juros, se emprestam ou querem já o dinheiro de volta.

Enfim, Portugal entrou no domínio da ficção. Transformou-se num imbróglio. Num sítio, mal frequentado como dizia Almada Negreiros, onde proliferam o disparate e o delírio. Cada cenário é mais alucinante do que o anterior.

Neste contexto, nesta hora grotesca da nossa história, cabe perguntar se não seria acertado começar a pensar em destituir o Presidente. Não é fácil segundo a nossa Constituição. O Presidente só pode perder o mandato em duas situações. Se se ausentar do país por mais de 5 dias sem autorização da Assembleia da República ou for condenado por crime. Que Cavaco tem estado ausente é claro para todos e que a recente declaração configura um grave atentado à lógica também. Não sei se chega.

Artista Plástico

Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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