Opinião
Véspera de Assunção
Do último quartel do século XX ficarão na História de Portugal o golpe militar dado dois anos antes que abriu caminho à descolonização, à democracia e à Europa, e a integração no país restante – Portugal Continental, Açores e Madeira – sem derrame de sangue nem tumulto social
Boa semana para deitar contas à vida. Não ao trote do ciúme (como em versos de Alexandre O’Neill), mas prantados em situação "que alguns países que não servem nem de exemplo nem sequer de lembrança dominaram com total esquecimento do Estado de direito" (fórmula de Adriano Moreira) e vão continuar a dominar, agravando os tratos de polé a que nos submetem - com um ramalhete de funcionários internacionais subalternos a virem verificar periodicamente se os tormentos fazem efeito.
Quando começou a recente e ridícula crise política - desvergonhas, pequenezes, traquinices, incompetências, obtusidades e irresponsabilidades – a Europa do Norte, a que quer, pode e manda, ficou um bocadinho apreensiva. Se o delinquente-modelo do reformatório afinal se pusesse a bater o pé? Se eleições perturbassem planos estabelecidos? Se governo de salvação nacional quisesse ajustar os termos de algumas das condições acordadas sob a égide de uma Alemanha cheia de sangue na guelra (nada de radical – a dívida seria paga –, mas há maneiras de o fazer mais próprias de relações entre iguais e menos onerosas para todos)? Se passasse a haver em Portugal um governo que sentisse o país atrás de si em vez de um governo que sente o país contra si?
Qual o quê. A Europa do Norte pode exigir mais tratos de polé. Lisboa vai continuar a dizer à troika como há mais de meio século num teatro do Parque Mayer, Vasco Santana dizia da paralisia (fingida) de co-conspirador contra os invasores franceses, empurrado numa cadeira de rodas, a esbirro que o queria pôr à prova com uma agulha: "Isto é carninha morta, meu fidalgo. Pique-lhe com força! Pique-lhe num olho!"
Do último quartel do século XX ficarão na História de Portugal o golpe militar dado dois anos antes que abriu caminho à descolonização, à democracia e à Europa, e a integração no país restante – Portugal Continental, Açores e Madeira – sem derrame de sangue nem tumulto social (em altura de ânimos políticos exaltadíssimos, à esquerda e à direita), de mais de seiscentas mil pessoas, fugidas das antigas colónias depois de descolonização levada a cabo sem honra e sem tino.
A absorção pacífica por Portugal dos retornados, muitos dos quais nem sequer cá tinham nascido, foi feito ímpar. Vale a pena extrapolar: imagine-se a França a ter de acolher de um momento para o outro mais 4 milhões de franceses; imaginem-se os Estados Unidos a receberem de repente mais 22 milhões de americanos. Esse momento exemplar merecia ser mais bem conhecido: ficcionista de génio, em prosa ou filme, deveria gravá-lo nas nossas almas. Mas as misérias de ópera bufa da crise vieram pela mesma razão - o gosto português de nos ajeitarmos dá para o bem como dá para o mal.
E as contas à vida? A culpa é do euro ou estaríamos pior ainda sem o euro? Ir em romagem a Cabanas de Viriato onde a lenda diz que tudo começou ou pedir a Bruxelas cartão de identidade? Comer e calar, manda Salazar ou o povo unido etc., etc.? Não há-de ser nada.
Embaixador
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