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José Cutileiro - Embaixador 04 de Setembro de 2013 às 00:01

O veterinário da Casa Leal

Na Síria, os rebeldes ficaram de monco caído e os situacionistas exultaram. Nem todos terão percebido logo que a decisão de Obama tinha muito pouco a ver com eles e muito a ver com vontade de entalar o Partido Republicano, dividido entre intervencionistas aguerridos e isolacionistas convictos.

Sábado passado, Barack Obama lembrou-me o veterinário da casa agrícola do meu chorado amigo Carlos Leal, a quem, depois de ida a herdade distante, pernoitando fora, a mulher se queixou de ter sido importunada na sua ausência por um conterrâneo chamado, salvo erro, Ferro. Ofendido na sua honra, o veterinário foi dizer no café que ia "matar o Ferro!". Passou-se esse dia, outros dias passaram, depois uma semana, depois duas e o meu amigo perdeu a paciência. "Olhe lá" perguntou uma manhã ao veterinário "Você mata ou não mata o Ferro?" "Mato, sim. Depois de acabar de pagar as minhas dívidas."


Assim está Obama, verificando na sua cabeça informadíssima as contas morais que tenha a prestar, as informações que deva receber, as garantias de que precise se assegurar antes de ordenar um ataque à Síria por o governo de Damasco ter usado armas químicas para atacar povoações habitadas por rebeldes. Havia grande expectativa de ver chegar enfim de Washington uma manifestação inequívoca de clarividência política e de uso justo da força. Que fizesse todo o mal possível a Bashar-al-Assad e o menor mal possível à população civil. Que servisse de aviso a quem o uso de armas químicas pudesse tentar. Que restabelecesse credibilidade americana abalada pelos egrégios disparates de George W. Bush. Que deixasse claro nas cabeças de aliados e de adversários que com os Estados Unidos não se brinca.

Dias seguidos coligindo informação que dava por autor da barbaridade o governo de Assad haviam sido acompanhados por solidariedade transatlântica, previsível, de David Cameron e, imprevista, de François Hollande. Numa semana de sobressaltos, porém, a Câmara dos Comuns em Londres (num reflexo ao engano a que Tony Blair a levara no Iraque) tirou o tapete a Cameron e Obama anunciou, em vez de ataques, ir pedir ao Congresso que este se pronunciasse - sem que, frisou, a isso estivesse obrigado. Na Síria, os rebeldes ficaram de monco caído e os situacionistas exultaram. Nem todos terão percebido logo que a decisão de Obama tinha muito pouco a ver com eles e muito a ver com vontade de entalar o Partido Republicano, dividido entre intervencionistas aguerridos e isolacionistas convictos. Entretanto Hollande viu-se sozinho, mas não parece até agora ter perdido o Norte.

Quando Obama chegou à Casa Branca devolveu a Londres um busto de Churchill que lá estava por empréstimo. Com sangue irlandês e queniano até se entende, mas no resvalar do Ocidente para medo de tudo e falta de espinha, para, como o veterinário, encontrar sempre razões de não matar o Ferro, o homem volta-nos à ideia.

Durante a Guerra de 14, num parapeito de trincheira, o céu da noite iluminou-se de repente porque os alemães tinham começado a atacar e o colega ao seu lado estremeceu. "Não gostas de guerra?" espantou-se Churchill. Chocante? Talvez no casulo em que vivemos. Mas o mundo não é como a gente gostaria que ele fosse e se insistirmos em não querer dar por isso acabaremos mal.

* Embaixador

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