Opinião
O veterinário da Casa Leal
Na Síria, os rebeldes ficaram de monco caído e os situacionistas exultaram. Nem todos terão percebido logo que a decisão de Obama tinha muito pouco a ver com eles e muito a ver com vontade de entalar o Partido Republicano, dividido entre intervencionistas aguerridos e isolacionistas convictos.
Sábado passado, Barack Obama lembrou-me o veterinário da casa agrícola do meu chorado amigo Carlos Leal, a quem, depois de ida a herdade distante, pernoitando fora, a mulher se queixou de ter sido importunada na sua ausência por um conterrâneo chamado, salvo erro, Ferro. Ofendido na sua honra, o veterinário foi dizer no café que ia "matar o Ferro!". Passou-se esse dia, outros dias passaram, depois uma semana, depois duas e o meu amigo perdeu a paciência. "Olhe lá" perguntou uma manhã ao veterinário "Você mata ou não mata o Ferro?" "Mato, sim. Depois de acabar de pagar as minhas dívidas."
Assim está Obama, verificando na sua cabeça informadíssima as contas morais que tenha a prestar, as informações que deva receber, as garantias de que precise se assegurar antes de ordenar um ataque à Síria por o governo de Damasco ter usado armas químicas para atacar povoações habitadas por rebeldes. Havia grande expectativa de ver chegar enfim de Washington uma manifestação inequívoca de clarividência política e de uso justo da força. Que fizesse todo o mal possível a Bashar-al-Assad e o menor mal possível à população civil. Que servisse de aviso a quem o uso de armas químicas pudesse tentar. Que restabelecesse credibilidade americana abalada pelos egrégios disparates de George W. Bush. Que deixasse claro nas cabeças de aliados e de adversários que com os Estados Unidos não se brinca.
Quando Obama chegou à Casa Branca devolveu a Londres um busto de Churchill que lá estava por empréstimo. Com sangue irlandês e queniano até se entende, mas no resvalar do Ocidente para medo de tudo e falta de espinha, para, como o veterinário, encontrar sempre razões de não matar o Ferro, o homem volta-nos à ideia.
Durante a Guerra de 14, num parapeito de trincheira, o céu da noite iluminou-se de repente porque os alemães tinham começado a atacar e o colega ao seu lado estremeceu. "Não gostas de guerra?" espantou-se Churchill. Chocante? Talvez no casulo em que vivemos. Mas o mundo não é como a gente gostaria que ele fosse e se insistirmos em não querer dar por isso acabaremos mal.
* Embaixador