Opinião
Grécia: coisas acabadas
Excluída a Grécia, nove Estados da UE fora da moeda única terão contas a pedir pelas fracassadas propostas de integração monetária e ambições federalistas que dizimaram apoios e avivaram temores e ódios nacionais.
"Outra catástrofe, que não imaginávamos,
brusca, torrencial, cai sobre nós,
e desprevenidos - como teríamos tempo - arrebata-nos."
Konstandinos Kavafis, 1911
Ajuda de emergência alimentar e medicamentosa a Atenas a par da contenção de altas de juros de dívida pública de países como Portugal ou a Itália assumem a prioridade a partir do momento em que o BCE cortar o financiamento à banca grega.
Esgotada a via negocial, a UE e os Estados da Zona Euro vão pôr à prova a robustez do "Mecanismo Europeu de Estabilidade" e a capacidade de intervenção do BCE no mercado de dívida numa conjuntura em que a quebra bolsista na China e os imponderáveis de um acordo sobre o programa nuclear do Irão testam entendimentos políticos e mercados financeiros.
A estabilidade do euro, segunda principal moeda de reserva depois do dólar, prevalecerá sobre todas as considerações em Londres, Pequim, Tóquio, Washington, Deli ou Moscovo, mas crescentes dúvidas se irão colocar quanto à solidez da moeda única.
A manta de retalhos do euro
A crise grega deixou a claro as incoerências da eurozona e aparentam não ser exequíveis as propostas de federalização da governação orçamental e económica num quadro de acentuados diferenciais nacionais de produtividade, competitividade e saldos de balanças de transacções correntes.
Sucessivos projectos federalistas fracassaram no âmbito da UE e os ínvios compromissos constantes dos tratados em vigor podem ter esgotado possibilidades de eficácia e legitimação políticas.
A renovada pujança de movimentos xenófobos da França à Dinamarca indica que para crescentes faixas dos eleitorados é cada vez mais difícil aceitar a tese de que a livre circulação de pessoas, bens e capitais propicia crescimento ininterrupto gerando emprego num quadro de crescente convergência de rendimentos e capacidades competitivas não-antagónicas no âmbito do bloco do euro.
Paz e prosperidade, sob garantia de defesa dos Estados Unidos ante a URSS, foi o mote da reconciliação franco-alemã no pós-guerra, alargando-se progressivamente a cooperação económica no bloco ocidental, até as "Comunidades Europeias" surgirem como garante de transições democráticas na Grécia, Portugal e Espanha na década de 1970 e de Estados em ruptura com o comunismo no início do milénio.
A legitimidade e anuência com que o chamado "projecto europeu" contou esgotaram-se com a catástrofe grega.
Aritmética não-cavaquista
Excluída a Grécia, nove Estados da UE fora da moeda única terão contas a pedir pelas fracassadas propostas de integração monetária e ambições federalistas que dizimaram apoios e avivaram temores e ódios nacionais.
O apuro chega numa altura em que Bruxelas e putativos entendimentos europeus claudicam na gestão de conflitos gerados pelo expansionismo russo, crises no Magrebe e no Levante.
Acresce um confronto de soberanias nacionais patente no impasse que condenou à catástrofe o desvario governamental de conservadores, socialistas, extrema-esquerda e extrema-direita gregas, com conivência da banca e governos europeus.
O rasto de devastação, a inconsequência das reestruturações nominais e as reais de dívida de Atenas em 2011 e 2012 vão pesar por muitos anos Europa afora.
Os imperativos legais de votação pelos parlamentos da Alemanha, Eslováquia, Áustria, Holanda, Finlândia e Estónia de programas de resgate da Grécia bastavam para condenar ao triunfo a estratégia leninista de ruptura seguida por Alexis Tsipras e, paradoxalmente, relançar a discussão sobre a fundamentação democrático-nacional do federalismo europeu.
Outra catástrofe
As perdas financeiras pelo incumprimento de Atenas são triviais comparadas com os danos provocados pela deriva de um Estado que legalmente não pode ser expulso da UE ou do euro, comprometendo negociações políticas sobre eventuais revisões de tratados no intuito de garantir a permanência do Reino Unido.
Da estabilização e pacificação dos Balcãs, ao diferendo turco-helénico em Chipre, passando pelas disputas sobre recursos de gás natural no Mediterrâneo oriental, controlo de emigração ilegal ou confronto com a Rússia, são muitas as questões em que as tempestades de Atenas vão condicionar braços-de-ferro à escala regional e global.
Outra catástrofe arrebatará, ainda, a Grécia quando o país acabar relegado à inconsequência de um Estado incapaz de fazer prevalecer a soberania nacional e contemplar um legado clássico, arrebatado por outros, transfigurado e remitido a um desgosto de mais de dois penosos milénios de decadência.
Jornalista