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09 de Dezembro de 2014 às 18:45

A tortura e a política

A deturpação dos resultados das "técnicas reforçadas de interrogatório" é uma das alegações mais danosas da investigação do Senado acerca das práticas da CIA aprovadas pela administração de George W. Bush.

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A tortura de suspeitos de terrorismo, designadamente asfixia e privação de sono, terá sido corrente e ineficaz após o 11 de Setembro, sobretudo até 2006, segundo o sumário executivo da Comissão de Supervisão dos Serviços de Informação.

 

A divulgação parcial dos resultados do inquérito realizado entre 2009 e 2013 vem na sequência da admissão, em Abril de 2009, pelo Departamento da Justiça de técnicas de tortura aplicadas pela CIA no quadro do programa de "entregas extraordinárias" a países terceiros (da Síria à Roménia) para prisão e interrogatório de suspeitos.

 

Mentira e manipulação

Bush reiterou este domingo que os agentes da CIA actuaram como "patriotas", mas a Comissão, presidida pela democrata Dianne Feinstein, considera que a agência manipulou e omitiu dados ao presidente e ao Congresso para criar a falsa ideia de que os "métodos duros", incluindo simulação de execuções nunca autorizadas pela Casa Branca, conduziam a resultados efectivos.

 

As teses defendidas por Alberto Gonzales (procurador-geral entre 2005 e 2007) de que "prisioneiros não combatentes" estrangeiros poderiam ser submetidos, fora dos Estados Unidos, a técnicas de interrogatório não letais proibidas pelas legislações norte-americana e internacional caíram no descrédito e foram renegadas por Obama na sua campanha eleitoral em 2008. 

 

Obama declarou, em Agosto deste ano, que os Estados Unidos teriam "torturado alguns tipos", pondo em causa valores democráticos fundamentais, marcando posição na polémica sobre a actuação da CIA, apesar de a sua administração prosseguir uma política de assassinatos de suspeitos e terroristas confessos no estrangeiro de dúbia legalidade.

 

Entre as críticas às descrições e as conclusões dos senadores, é de temer que seja relegada para segundo plano a alegação de manipulação política por parte da CIA que envolveria três directores: George Tenet, Porter Goss e Michael Hayden.

 

Guantánamo

 

O relatório poderá levar advogados de detidos por terrorismo em julgamento por comissões militares a alegarem a nulidade de declarações proferidas pelos seus clientes sob coerção, ainda que o estatuto dos 136 detidos em Guantánamo continue em aberto.

 

São 70 os presos que, segundo o "The New York Times", não podem ser libertados por acusação em curso ou condenação em tribunais militares (uma dezena) ou devido à classificação de "alto risco", caso de Hambali, líder da "Jemaah Islamiyah" indonésia, ou de Khalid Sheikh Mohamed, um dos organizadores do 11 de Setembro.

 

Incapaz de levar o Congresso e os governos estaduais a aceitarem um compromisso para julgamento e detenção de suspeitos detidos em Guantánamo, Obama terminará o seu mandato sem honrar a promessa feita de encerrar a prisão no primeiro ano na Casa Branca.

 

Politicamente inviável é a proposta aventada por Anthony Romero da "American Civil Liberties Union" para Obama, seguindo exemplos de Abraham Lincoln, Andrew Johnson, Gerald Ford, James Carter, optar por um perdão presidencial de responsáveis pela autorização e prática de tortura de modo a confirmar a efectiva ocorrência de crimes. 

 

A imoral ineficácia da tortura

 

Na impossibilidade de aceder a dados confidenciais a discussão acerca da eficácia de informação conseguida sob tortura em alternativa a outras formas de obtenção de dados, como elementos para actuação preventiva ou punitiva, irá perder-se em declarações de princípio.

 

Ao arrepio da investigação histórica que constata, em regra, a nula ou limitada utilidade prática da violência física e psicológica para colher informação para acções antiterroristas sistemáticas, as polémicas dos próximos tempo pouco irão adiantar.

 

O valor de propaganda antiamericana do relatório será naturalmente potencializado por todos os adversários e inimigos de Washington, perturbará aliados e parceiros convictos ou pragmáticos, podendo admitir-se como provável que alegações de retaliação terrorista venham a obscurecer ainda mais as implicações políticas de fundo.

 

Questões de fundo      

                                  

Erros de análise política estratégica por parte do executivo, descoordenação entre serviços de informação civis e militares, ausência de agentes próprios no terreno, carência de analistas independentes, relutância de direcções em apresentar cenários alheios às propensões da Casa Branca, além da recusa em acatar a supervisão do Congresso e da Justiça, voltam a sobressair como males maiores.

 

É a terceira vez, após os inquéritos oficiais sobre o 11 de Setembro e o programa clandestino de armas de destruição maciça de Saddam Hussein, que se acumulam provas, indícios, testemunhos e análises fundamentadas sobre disfunções estruturais dos serviços de informação e operações clandestinas dos Estados Unidos.

 

Um Congresso controlado por republicanos, um presidente em quebra de prestígio no final de mandato e uma opinião pública ainda maioritariamente indiferente aos radicalismos que se anunciam nas primárias para as próximas presidenciais contribuem para um clima político pouco propenso a mudanças de fundo.

 

Jornalista

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