Opinião
Os novos leprosos
Era o que faltava que um doente tenha de pedir desculpa pela doença. Seja ela qual for. A culpa é de quem estigmatiza e não de quem é estigmatizado.
Confesso que senti um enorme desconforto ao ver António Lobo Xavier num noticiário - em direto, a partir de casa - a protestar contra o furor de que foi alvo desde que a comunicação social divulgou que testara positivo para a covid-19. Percebi a sua queixa contra os idiotas que o acusavam de ter "atentado" contra os insignes conselheiros de Estado mais velhinhos, mas angustiou-me perceber como se sentia na necessidade de manifestar a sua inocência, fazendo correr o rol dos cuidados que sempre teve para não se infetar, e o desespero com que anunciou que, afinal, se tivesse aparecido entre os testados outro positivo nada podia garantir que não fosse esse que lhe tivesse pegado a ele e não o inverso.
Compreensivelmente reagia contra a turba que quer transformar os doentes covid em novos leprosos, mas preferia que não o tivesse feito, muito menos naquele tom que me pareceu de quem, na realidade, assimilou a ideia de que são os comportamentos levianos que conduzem - ou evitam - que alguém seja infetado. Era o que faltava que um doente tenha de pedir desculpa pela doença. Seja ela qual for. A culpa é de quem estigmatiza e não de quem é estigmatizado.
Mas se dúvidas houvesse de que o medo nos torna a todos mais primários, esta pandemia teria vindo dissipá-las. O cérebro perante uma ameaça entra em modo de fuga ou luta, foca-se no "inimigo" e concentra-se em tornar-nos mais capazes de nos pirarmos dali ou de ganharmos a guerra. Para criar energia para esta missão de sobrevivência, bombeia hormonas, aumenta o ritmo cardíaco, bloqueia a digestão e as operações não essenciais, canalizando o máximo de sangue para os músculos, tornando-nos capazes de correr os mil e quinhentos metros obstáculos, quando em situações normais não damos duas voltas ao jardim. Sobram-lhe necessariamente menos recursos para racionalizar, pensar com calma, ou fazer introspeções sobre preconceitos e ideias feitas. Se ainda por cima, como acontece com a covid, o perigo é invisível e omnipresente, prolongando-se no tempo, passamos a um estado de alerta permanente, a vê-lo em todo o lado, tendencialmente nos "outros", os que vêm de fora, nos supostos "ricos" ou "influentes" que imaginamos não se comportam como deviam. O resultado fica à vista desde tempos imemoriais: excluímos, criamos guetos, fazemos justiça por próprias mãos, o que no século XXI significa escrever uns posts inflamados, alegremente partilhados por quem tem ainda menos jeito para redigir insultos.
Tudo isto não é uma inevitabilidade, nem serve de desculpa. E tem antídotos. A OMS recorda alguns, que vão para lá de meras questões semânticas: ajuda se não nos referirmos aos doentes como "vítimas da covid", ou "suspeitos covid", falando antes de gente que "contraiu" a doença, evitando dizer que "transmitiram" ou "infetaram" terceiros. E pede aos jornalistas que evitem reportagens que se focam no comportamento individual e na responsabilidade de um doente "por ter espalhado covid-19", e que deixem lá essa demanda pelo "paciente zero" do seu país.
O pior é que quanto mais complexa é a realidade, mais as pessoas procuram respostas simples. E até a inevitável insistência nas formas de prevenção, como lavar as mãos ou evitar encontros sociais, com uma carga forte no "protege os outros", transforma-se numa faca de dois gumes. Porque, afinal, se "fazendo tudo bem" as pessoas não só estão a salvo, como não colocam os demais em perigo, então os que adoecem só podem ser uns egoístas inconscientes. Só que não, mas lá está, para o entender precisamos antes de respirar fundo e dar de beber aos neurónios...
Jornalista