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O coronavírus não vai fazer de mim uma fada do lar

Ai não vai, não! À constatação de que a prisão domiciliária me dá a oportunidade de me transformar numa fada do lar, reajo com a vontade de não fazer a cama, nem emparelhar as meias desirmanadas. O que significa esta segunda adolescência?

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O obstáculo mais difícil do teletrabalho é conseguir convencer as pessoas que vivem connosco - maridos, filhos e até o cão e o gato - que o facto de trabalharmos a partir de casa não é sinónimo de estarmos disponíveis. A tentação dos que saem, é imaginar que quem fica vai conseguir assegurar as tarefas domésticas porque, afinal, sobra-lhe certamente tempo para tirar a loiça da máquina, fazer o jantar, ou até dar um salto aos correios para levantar uma encomenda, que não tiveram oportunidade de ir buscar. Até o cão, aparece com a trela na boca, a pedir que o levemos à rua!

 

O mais difícil não, desculpem, enganei-me, porque muito mais complicado do que convencer os outros, é convencermo-nos a nós próprias de que não perdemos o direito a partilhar as tarefas domésticas, na mesma exata proporção do que se trabalhássemos fora. Ou, até mais, porque funcionando em regime de freelance, e sem um ordenado fixo ao fim do mês, na realidade queimamos as pestanas mais horas e com mais concentração, do que quem sai e se vai distraindo (e bem) com cafés e conversas de corredor, tendo o privilégio de aproveitar os engarrafamentos para conversar ao telefone. O mais estúpido é que mesmo sabendo disto tudo, basta um comentário do estilo "Será que as minhas calças estão passadas?", para sentirmos a necessidade de nos justificar, a raiva da resposta a mascarar a culpa por não correspondermos aos padrões da fada do lar que, vá-se lá saber porquê, nos impusemos.

 

Em teoria, estes tempos da covid-19 deviam reforçar a nossa posição, até porque muitos homens estão, pela primeira vez, em teletrabalho e a constatar que quando é levado a sério, não é apenas totalmente absorvente, como ainda se torna muito mais difícil "desligar". Mas, na prática, fechados atrás da porta de um escritório improvisado, nervosos com a situação das suas empresas, é bem provável que considerem o seu teletrabalho mais prioritário do que o das suas queridas esposas. Ou, dito por outras palavras, tomando como certo que cabe às mulheres, sobretudo às mães, a missão de manter a casa e as crianças em ordem, e as refeições na mesa. 

 

Mas, mesmo quando os maridos se encarregam da cozinha, e os pais assumem a sua quota parte, paira sobre quem está em prisão domiciliária, a sensação de que devíamos estar a aproveitar este interregno para fazer arrumações, pôr em ordem os papéis acumulados, encerar os móveis e, até, encontrar o par às toneladas de meias desemparelhadas que há séculos estão esquecidas num canto. No fundo, como se o vírus estivesse prestes a entrar pela porta, pronto a fazer o teste do algodão.

 

Pensando melhor, talvez seja um sintoma do medo, bem real, de que a doença nos apanhe na curva, sem que a nossa vida esteja em ordem. Inseguras, voltamos a ouvir a voz das nossas mães, que nos dizem que vamos ser julgadas pela aparência dos nossos "lares", e dos nossos filhos. Explica porque, por estes dias, sinto uma rebeldia adolescente: não me apetece fazer a cama, não quero arrumar as prateleiras dos livros por autores, como tantas vezes jurei que faria se alguma vez tivesse tempo, e muito menos vencer o meu ódio à culinária. Talvez, seja a minha maneira de dizer ao raio do vírus, que não vai ganhar, que não fará de mim o que não quero ser. 

 

Jornalista

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