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Espelho meu, espelho meu...

Felizmente envelhecemos em suaves prestações, habituando-nos subtilmente ao nosso reflexo no espelho, embora se mantenha sempre muito distante de como nos imaginamos quando fechamos os olhos e nos vemos de dentro.

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Entrei na loja de uma daquelas grandes cadeias de cosmética com um frasco vazio de um potente produto anti-idade, reafirmante, essas coisas todas, daqueles que promete milagres não para amanhã, nem tão-pouco para daqui a um mês, mas instantâneos. Basicamente, suspeito que é uma forma sofisticada da goma que ainda me lembro de ver usar quando se passavam a ferro os colarinhos das camisas de homens e os folhos dos vestidos de batizado, mas que tem, pelo menos, um efeito placebo.

 

Fui atendida por uma empregada muito simpática que quando lhe perguntei se havia mais daquilo, respondeu-me orgulhosamente que sim, conduzindo-me a uma das centenas de prateleiras de embalagens magníficas. Ali estava, apontou, felizmente não esgotara o stock, disse-me e, com elegância, pôs-se em bicos de pés e retirou um frasquinho idêntico da fila bem alinhada. Na verdade, para efeitos mais seguros, devia era levar a gama completa.

 

Aceitei avidamente a embalagem, mas quando virei a poção mágica para verificar o preço, entrei em estado de choque.

 

"Sempre custou isto?", perguntei. As perguntas idiotas que fazemos não têm explicação.

 

"Um pouco mais", esclareceu, porque pelos vistos gozava naquele momento de uma simpática promoção de 25%, desconto que até podia ser maior se eu fosse a feliz proprietária de um cartão platina, daqueles que só por si nos tiram anos de vida de cima. Visivelmente não era. Não o disse, mas li-o nos seus olhos.

 

Voltei a colocar o tesouro no lugar, sentindo a necessidade de me justificar. "Sabe, devia estar muito deprimida na altura em que o comprei. Acho que vou esperar uma ocasião em que esteja de novo mais em baixo, para então o levar."

 

A gargalhada da senhora rejuvenesceu-me mais do que dois boiões daqueles, mas isso é só porque conseguir levar alguém a rir tem sobre mim esse estranho efeito. Mesmo, quando a pessoa que ri sou eu própria!

 

Adiante. Não tenho dúvida nenhuma de que lá voltarei, e a empregada da loja também ficou certa do mesmo, basta que tenha mais tempo para me olhar ao espelho ou, num dia mau, dê de caras com uma fotografia minha mais realista. Decididamente, a esperança que colocamos na indústria cosmética é inversamente proporcional à certeza da nossa finitude, e não é propriamente como se estivéssemos em posição de resistir a promessas de vida eterna.

 

Felizmente envelhecemos em suaves prestações, habituando-nos subtilmente ao nosso reflexo no espelho, embora se mantenha sempre muito distante de como nos imaginamos quando fechamos os olhos e nos vemos de dentro. É claro que colar a nossa melhor fotografia a cobrir a totalidade do espelho da casa de banho adia a dependência das poções alegadamente mágicas, mas também é verdade que torna mais difícil escovar os dentes. Por isso sim, seguramente regressarei, procurando a senhora que, além do mais, se ri das minhas graças. 

 

O que fiquei a pensar é que, se calhar, devia simultaneamente despejar o porquinho-mealheiro e comprar ações na própria indústria. Segundo dados da Associação de Indústrias de Cosmética (AIC), e cito, esta é das poucas áreas em crescimento na Europa, com um volume anual de negócio de 60 biliões de euros, empregando mais de 150 mil pessoas, e cerca de outras 350 mil indiretamente, no retalho, distribuição e transporte. Não há forma de a coisa correr mal, num país de pirâmide etária invertida, com 157 velhinhos e meio por cada 100 jovens, e sempre a agravar. Talvez, então, os dividendos me permitam a gama inteira, e me sobre depois tempo e disposição para a aplicar. Vou pensar nisso. 

 

Jornalista

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