Opinião
O diabo veste farda
Os militares brasileiros emergiram, nos últimos anos, como uma espécie de setor imaculado, tocado por um odor de santidade ética, que pretende colocá-los acima de qualquer suspeita.
Alguns governos da ditadura militar brasileira (1964/1985) tiveram menos militares do que agora tem o Governo Bolsonaro. Num país em que a classe política dá a imagem de quase não dispor de quadros qualificados sobre os quais não impendam suspeitas ou acusações de improbidade, os militares emergiram, nos últimos anos, como um espécie de setor imaculado, tocado por um odor de santidade ética, que pretende colocá-los acima de qualquer suspeita.
Noutras geografias, tivemos já a "república dos juízes". No Brasil, também com juízes à mistura, há agora esta espécie de moralidade fardada, desfilando para o exercício impoluto do poder. Estaria "descoberta a pólvora", por todo o mundo, se o recurso aos militares pudesse ser assumido como a solução para os problemas éticos da política. Ora é preciso não esquecer que os oito, repito, oito ministros militares que agora enxameiam o palácio do Planalto não dispõem da menor "accountability" democrática, respondem apenas perante um presidente que, como se está a ver dia após dia, sendo uma criação sua, é um homem com imensas limitações, enredado numa teia familiar que já se constatou pedir meças ao pior da política brasileira. O facto de as duas mais importantes forças na Câmara de Deputados serem o PT, nos dias de hoje sujeito a uma quarentena política de que será muito difícil sair, e o PSL, o partido que foi "barriga de aluguer" de Bolsonaro e cujo presidente foi já obrigado a demitir-se do Governo, faz com que o escrutínio parlamentar esteja, por ora, muito atomizado, o que favorece pontualmente esta preeminência militar.
Os militares brasileiros têm uma história recente de relação com o poder. No auge da Guerra Fria, a exemplo de outros sinistros exemplos na região, montaram um regime de arbítrio, com perseguições, torturas, prisões e muitos mortos - um retrato que só fica menos mal perante o incomparável terror de outras ditaduras latino-americanas. O processo de transição pactuado, no qual intervieram muitos políticos que haviam sido homens de mão dos militares, permitiu que a tropa brasileira escapasse a um escrutínio transparente já em tempos de liberdade, com as "comissões de verdade", criadas na última década, a serem objeto de forte reação do mundo das fardas. Os militares brasileiros costumam tentar absolver-se a si próprios com o argumento das mortes provocadas pelos "terroristas" da extrema-esquerda, deliberadamente escondendo os números bem mais gravosos das suas próprias atrocidades e o facto de a reação clandestina armada desses grupos corresponder à contestação da ascensão violenta, ilegítima e antidemocrática dos militares ao poder.
Num país com flutuações políticas muito contrastantes, os militares brasileiros foram capazes de gerar, ao longo dos anos e por cima desses ciclos, uma curiosa doutrina estratégica, com peculiares dimensões de política económica. Trata-se de uma espécie de nacionalismo desenvolvimentista que, no passado, teve laivos estatizantes e de apelo a um forte protecionismo, assente num sentimento de independência nacional que passava pela apologia da preservação de um importante setor público, numa espécie de recuo assumido para o modelo da autarcia, tido como viável em função da existência de um forte mercado interno.
Ouvindo e lendo agora com atenção alguns dos "criadores" militares de Bolsonaro, fica a sensação de que essa doutrina pode, entretanto, ter evoluído. Desde logo, no tocante à aceitação das virtualidades das receitas liberais, quer no comércio externo, quer, em especial, no que toca ao peso das empresas públicas, que os tempos democráticos vieram a confirmar como antros privilegiados de corrupção. Logo veremos como será possível acomodar alguns fortes interesses económicos instalados com o custo imediato das medidas liberais, bem como com o tropismo nacionalista que marca muito a identidade brasileira.
As soluções políticas com intervenção militar são, pela sua natureza, de exceção. Este verdadeiro Governo militar "soft", pode, a prazo, vir a funcionar contra a democracia. Por isso, no Brasil, é preciso dizê-lo: o diabo veste farda, mesmo quando anda à paisana.
Embaixador