Opinião
Notícias de Fénix
Na última década, raramente a palavra Europa deixou de estar associada à ideia de crise. A “crise europeia” tornou-se uma expressão corrente, que, ao mesmo tempo, contribuía para absolver alguma impotência dos governos nacionais e associava as instituições comunitárias a um destino marcado pela irreversível incapacidade de estarem à altura daquilo que delas, dessa Europa, se esperava.
O tom dramático das cimeiras europeias, os sinais de desunião e de falta de sintonia entre os parceiros, a lentidão das respostas aos problemas, tudo isso foi dando da Europa comunitária a imagem de um paquiderme irrecuperável, marcado pelo gigantismo da sua máquina, pelo fim dos consensos que suportavam os antigos modelos de solidariedade.
A relativa surpresa que foi o Brexit e o surgimento, no seio dos Estados-membros, de alguns atores que punham em causa os próprios fundamentos do projeto europeu, que eram dados por comummente adquiridos, alimentou bastante essa ideia de declínio inexorável, pelo menos no seu modelo de destino coletivo.
A palavra “refundação” surgiu várias vezes, as sugestões de fórmulas de trabalho com integração diferenciada dos Estados em matéria de políticas foram muitas. A questão sobre se ainda estávamos todos “no mesmo barco” e, em caso de resposta negativa, se não seria oportuno tirar consequências institucionais disso, pairou muito por essa Europa. A bem dizer, ainda anda na cabeça de alguns, podemos ter a certeza.
A Europa tinha sido lenta e pesada na reação à crise financeira de 2007. Em sequência, por falta de vontade política, tomou decisões que muito contribuíram para o desencadear da crise das dívidas soberanas, que fraturou o continente, não apenas em termos de riqueza, mas igualmente no que toca ao discurso sobre a solidariedade, que se foi perdendo, de uma forma quase obscena. Essa mesma crise de solidariedade voltou a estar em causa aquando da questão dos refugiados e continua, aliás, a ser patente na debilidade das respostas face às pressões migratórias.
O Brexit parecia poder vir a ser uma machadada dramática no projeto, e as suas consequências estão ainda longe de medidas. A Europa era amputada de um membro que, nem por ser um parceiro relutante, deixava de ser um componente essencial do seu poder como entidade económica e política à escala global. Um tanto surpreendentemente, contudo, os 27 juntaram-se para responder ao Reino Unido, com uma agenda firme, bem estruturada e, essencialmente, comum.
Mas com as dúvidas sobre a China a adensarem-se no seu seio, com o “amigo americano” a minar décadas de cooperação e a ameaçar o sistema multilateral em que a Europa jogara todas as cartas, com a persistência de sensibilidades divergentes face aos “infratores” internos, com tensões de vizinhança fortes (Rússia, Turquia, Médio Oriente, Líbia) a testarem a sua vontade externa, a Europa mantinha-se num limbo político.
De súbito, surgiu a pandemia. As economias pararam, as sociedades entraram numa crise quase existencial, os medos aceleraram, os governos enquistaram-se no essencial, os sacrossantos limites macroeconómicos foram esquecidos, o caleidoscópio das respostas sanitárias ameaçou a própria liberdade de circulação.
E, contudo, acabou por ser no meio desta imensa ameaça, aliás muito por virtude dela, que, quase como um coelho tirado da cartola, a Europa, sob liderança alemã e francesa, promoveu e conseguiu impor um modelo de resposta financeira, com contornos inéditos, que combina instrumentos clássicos com fórmulas inovadoras, rompendo tabus como a mutualização europeia de dívida e a possível criação de novos recursos.
Três mulheres, há que sublinhar, lideraram visivelmente esta resposta: a chanceler alemã, com uma coragem que lhe pode valer a História; uma presidente da Comissão Europeia com a vantagem pontual de ter a nacionalidade certa para dar força às suas propostas; e uma líder do Banco Central Europeu que, parecendo embora estar longe do rasgo de um Draghi, soube encontrar soluções no seu âmbito, em consonância com o projeto.
Fénix renasceu?