Opinião
A esperança europeia
Se tiver êxito nas receitas económicas para enfrentar os efeitos da crise pandémica, a União Europeia pode acabar por sair reforçada na sua unidade interna e no seu papel global.
Quando falamos de Europa, referindo-nos à atual União Europeia, tendemos a esquecer que as instituições do processo integrador são uma realidade mutante com o tempo – desde as políticas à sua própria abrangência geográfica. Se a ambição última – paz, liberdade e desenvolvimento – permanece, basicamente, a mesma, o modo de a materializar e de lhe conferir densidade mudou imenso.
Também o olhar dos europeus sobre esse processo passou a ser outro, e isso explica muitas coisas. Quando a Europa iniciou o seu percurso de integração, vinha de uma guerra que deixara o continente devastado. A recuperação das economias, com a ajuda do Plano Marshall, fez muito pelo bem-estar dos integrantes do projeto e o óbvio sucesso deste constituiu-se como o seu melhor cartão de apresentação. A melhor prova disso foi, aliás, o interesse do Reino Unido de se juntar aos países fundadores, superando as suas reticências e a sua óbvia relutância de se inserir num processo de partilha de soberanias, bem contrário à sua arraigada matriz institucional.
Os trinta anos “gloriosos” trouxeram um prestígio imenso à ideia europeia, com uma forte adesão a um modelo consubstanciado em bem-estar, num contexto de liberdade e democracia.
Com a vitória ocidental da Guerra Fria, a Europa integrada acabou por ser vítima do seu sucesso e da ambição que este desencadeou. Os Estados saídos da tutela soviética vieram bater à porta do projeto que lhes tinha sido mostrado, do lado “de cá”, como miragem a que então já podiam aspirar. E a euforia da conjuntura levou os Estados mais integradores à ideia de que um salto de aprofundamento era compatível com a absorção do Centro e Leste do continente. Maastricht foi a tradução institucional dessa ambição – moeda, política externa, união política.
Muita água correu depois sob as pontes, com sucessivas reformas dos tratados a tentarem conferir funcionalidade a uma Europa simultaneamente alargada e mais densa de políticas. Um espaço que, não obstante a sua excecional vitalidade, como potência comercial e expoente económico, estava a perder competitividade e a ficar para trás na corrida global.
O contexto, não sendo de estagnação, passou a não ser já de euforia. Em muitos Estados, o crescimento reduziu-se, o desemprego subiu, as deslocalizações foram incompreendidas, algum recuo soberanista começou a fazer o seu caminho.
As novas gerações, frustradas com a falta de oportunidades já não olham hoje o pós-guerra desolador, como os seus pais haviam feito. Ao invés, passaram a comparar as suas limitadas expectativas com os tempos fartos que tinham, entretanto, deixado de existir.
A globalização converteu-se no bode expiatório dessas frustrações, os choques com o estrangeiro que ameaça os empregos e fere a identidade cultural passou a ter um terreno fértil, com o terrorismo e as pulsões securitárias daí derivadas a provocarem tropismos nacionalistas. A falência ou a rutura do projeto europeu, como se recordarão, chegou então a ser anunciada.
Ora a Europa, não obstante todas as suas clivagens, foi bem resiliente. Conseguiu superar a crise financeira de 2007, acabou por resolver, “tant bien que mal”, a crise das dívidas soberanas, uniu-se para afrontar o fantástico desafio que é o Brexit, suportou estoicamente a pressão da crise dos refugiados e dos migrantes económicos e, no fim da linha, mostra agora uma insuspeitada vitalidade para contrariar, com imaginação económica e vontade política, os embates da crise pandémica. Tudo isto, nos anos mais recentes, sem poder contar com o tradicional “amigo americano”, que põe em causa o sistema multilateral que é a sua matriz de ação internacional.
O vírus maligno que por aí anda vai ser um desafio imenso para a estabilidade do projeto europeu. Contudo, se este souber encontrar os anticorpos, em matéria de políticas, para lhe fazer face com algum êxito, a Europa pode acabar por sair reforçada, à escala global, deste desafio. E, no plano interno, pode ter encontrado um novo sopro de estamina e coesão política. Será isto “wishful thinking”? Talvez, mas não há futuro sem esperança.