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09 de Janeiro de 2020 às 20:20

Não vale tudo

Se quisermos ser honestos, teremos de reconhecer que os EUA, com a sua agressão unilateral contra o Iraque, em 2003, foram, a grande distância, os principais culpados da desregulação securitária que se vive na região do Médio Oriente.

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O Presidente dos Estados Unidos da América ordenou a liquidação física, em território do Iraque, de um chefe militar do Irão.

Os EUA não estão em guerra declarada com o Irão, embora seja evidente, há muito, a sua hostilidade para com o seu regime. Se olharmos para trás, verificaremos que o derrube do líder iraniano que Washington tinha como seu aliado fiel, o Xá Reza Pahlevi, em 1979, iniciou um período de ininterrupta tensão entre os dois países. A invasão da embaixada americana em Teerão, nesse mesmo ano, por entidades iranianas dependentes das respetivas autoridades, espoletou naturalmente essa tensão, que nunca mais se desvaneceu e atravessou, em maior ou menor grau, todas as posteriores administrações americanas. Os EUA, a partir de então, passaram a apoiar quem se opusesse ao Irão, como foi o caso do Iraque, na devastadora guerra entre os dois países (1980/88).

 

Os evidentes e reiterados esforços do Irão para obterem a arma nuclear mereceram sempre uma forte rejeição da comunidade internacional, em especial dos EUA, do mundo ocidental em geral e dos adversários regionais de Teerão. Dentre estes, Israel (que possui armas nucleares, sem se submeter ao controlo da AIEA) é aquele que, reagindo às constantes ameaças do Irão face à sua existência como país, anunciou já poder vir a atacar as instalações nucleares iranianas, se a construção dessa bomba estiver prestes a concretizar-se (Israel fez isso contra o Iraque, pelos mesmos motivos, em 1981). Um grupo importante de países ocidentais, incluindo os EUA (administração Obama), fez entretanto um acordo diplomático com o Irão, que previa um controlo vigiado do seu programa nuclear. Com Trump, os EUA afastaram-se desse acordo.

 

O Irão, não sendo um país árabe, é um Estado muçulmano que segue e promove o shiismo, uma das duas grandes obediências religiosas muçulmanas. A outra, o sunismo, tem como principal expoente a Arábia Saudita (mas também a Turquia ou a Irmandade Muçulmana do Egito, embora com uma orientação divergente). Há países, porém, de que o Iraque é talvez o caso mais importante, onde o shiismo e o sunismo coexistem, com implicações no respetivo equilíbrio político interno, sendo o Irão regularmente acusado pelos seus adversários de promover núcleos shiitas em vários outros países, muitas vezes com fortes implicações político-militares, como acontece com o Hezzbolah, no Líbano, ou com as forças hutis, no Iémen.

 

O proselitismo shiita do Irão, nas suas expressões agressivas, e a sua obsessão com a arma nuclear converteram o país num "trouble-maker" da sociedade internacional. Com um regime autoritário sob uma liderança religiosa de traços medievais, o Irão é um país que se sente acossado pela sua vizinhança, adotando com regularidade um discurso jingoísta que torna difícil a interlocução diplomática. Mais recentemente, porém, por um interesse próprio que se conjugou com outros esforços internacionais, as forças de Teerão desempenharam um papel não despiciendo na luta contra o Daesh.

 

Se quisermos ser honestos, teremos de reconhecer que os EUA, com a sua agressão unilateral contra o Iraque, em 2003, foram, a grande distância, os principais culpados da desregulação securitária que se vive na região do Médio Oriente. Se algumas fortes tensões já ali existiam, a invasão do Iraque, levada a cabo sob pretextos deliberadamente falsos, conduziu ao estilhaçar daquele país, com as consequências que se viram.

 

Ao atuarem violentamente como agora fizeram, sem o menor mandato internacional, executando uma ação de guerra, uma liquidação seletiva de um líder militar estrangeiro, à revelia das autoridades do país que os "convidou" para ajudarem à sua segurança nacional, os EUA colocam-se, com total desplante, à margem da ordem internacional, arrogando-se direitos que negam a todos os outros. Todas as razões que possam ter contra o Irão enfraquecem-se com este seu comportamento, convidando à retaliação e arriscando uma escalada.

 

Os Estados de bem lutam por princípios, desde logo, seguindo-os. Essa deve ser a sua diferença. 

 

Embaixador

 

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