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27 de Novembro de 2018 às 20:05

Uma república sem juízes

Num Estado de Direito, o estatuto dos juízes é um vértice fundamental do regime, e por isso deve ser tratado com uma sensibilidade especial. Um corpo de titulares de órgãos de soberania não é uma corporação de funcionários.

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Não sei o que é mais extraordinário, se haver juízes em greve ou praticamente ninguém querer saber porque é que há juízes em greve. Toda a gente achou a paralisação uma decisão drástica e anormal (uma greve de titulares de órgãos de soberania?), mas, pelos vistos, na vida política portuguesa quase ninguém se surpreendeu ao ponto de achar que talvez se devesse tentar perceber as razões dos juízes, e eventualmente - se não fosse pedir muito - discuti-las a sério.

 

O debate concentrou-se na questão de saber se os magistrados judicias deveriam ou não poder fazer greve. O resto, que é o mais importante, foi tratado com ligeireza, como um mero "pacote reivindicativo" laboral - um conjunto de minudências técnicas e exigenciazinhas venais ao qual não interessa dar uma atenção muito pormenorizada.

 

Num Estado de Direito, o estatuto dos juízes é um vértice fundamental do regime, e por isso deve ser tratado com uma sensibilidade especial. Um corpo de titulares de órgãos de soberania não é uma corporação de funcionários.

 

Num país em que os juízes são vistos como trabalhadores dependentes do governo, eles acabam sempre por ser trabalhadores dependentes do governo. Porque a justiça não vive só da correcção e celeridade das decisões: ela vive também da imagem dos juízes e do sentimento de confiança na sua independência. Uma república em que os juízes não são encarados pelos cidadãos como órgãos de soberania, mas como chefes de repartição, é verdadeiramente uma república sem juízes.

 

Este desinteresse generalizado pela posição dos magistrados mostra que em Portugal as questões estruturantes do regime são tratadas com uma complacência perigosa. Olhar para a discussão em torno do estatuto os juízes como se fosse só uma típica luta laboral é o primeiro passo para se aceitar como natural que os juízes estejam, inevitável e permanentemente, numa situação de subserviência perante os outros órgãos de soberania, e que por aí a política possa sempre, em maior ou menor grau, mandar nos tribunais.

 

É óbvio que a própria greve acentua este risco, por muito raras e excepcionais que sejam as greves dos juízes. Para a maioria das pessoas, se os juízes fazem greve é porque não se distinguem dos professores ou dos estivadores.

 

O que há a dizer sobre isso é simples. Primeiro: os juízes não deveriam ter direito à greve, e isso deveria estar clarificado na lei. Segundo: essa proibição deveria ser o corolário lógico de um reforço do estatuto dos juízes como verdadeiro órgão de soberania, blindado em matérias centrais para a independência dos tribunais. Matérias que vão das garantias de defesa em processos disciplinares à limitação das flutuações remuneratórias, mas que não se cingem a elas. É o que se passa, por exemplo, nos Estado Unidos.

 

O importante é tornar o mais possível desnecessários, à partida, os conflitos corporativos do poder judicial com o poder político, que têm sempre o efeito desastroso de sugerir aos cidadãos que o primeiro é subalterno do segundo.

 

Mas para isso era preciso que o poder político conjugasse duas qualidades: sentido de Estado e coragem política. Não as temos visto em abundância.

 

Por um lado, o Governo do PS está neste assunto com a atitude habitual na sua relação com as profissões: promessas vãs sobre promessas vãs, num processo negocial cínico e infinito que serve mais para ir tentando estancar a conflitualidade do que para resolver o que quer que seja. Nada que surpreenda, vindo de um partido que, da última vez que esteve no Governo, com José Sócrates, quis integrar os juízes no regime de carreiras e vínculos da função pública, ideia prontamente chumbada pelo Tribunal Constitucional.

 

Por outro lado, Rui Rio, líder do maior partido da oposição, que desde a Câmara do Porto parece achar que as magistraturas são uma vasta conspiração contra ele próprio, diz que nem sequer quer ouvir falar dos problemas do estatuto dos juízes, por estar "de raiz totalmente em desacordo" com a possibilidade de os juízes fazerem greve. É isto o que temos.

 

Declaração de interesse: sou casado com uma juíza. Isso não determina a minha opinião, mas os leitores deste texto têm o direito de conhecer essa circunstância do seu autor.

 

Advogado

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