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13 de Outubro de 2016 às 20:45

No mundo da democracia "low cost"

Há anos qualquer um de nós quando ia pedir um empréstimo para comprar uma casa entrava no banco da esquina e falava com o gerente que conhecia.

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A democracia, já ninguém o ignora, está a ser encurralada por um conjunto de guardas pretorianos de um mundo mais fechado, sombrio e desigual que aí vem: a destruição da classe média, o colchão onde repousavam os conflitos das sociedades, o fim da mobilidade social, a globalização digital, o desemprego estrutural, a desigualdade crescente, são forças que a colocaram na defensiva. O contrato social, onde o Estado funcionava como regulador de interesses díspares, e onde as forças económicas trocavam parte do seu poder pela acalmia social, desintegra-se. Os corpos de representação social (a começar pelos partidos e a acabar na justiça) naufragam num pântano onde a corrupção campeia. Esse terrível vírus que corrói a democracia, como defendeu o escritor Mario Vargas Llosa, um dos convidados de um dos palcos mais importantes de debate sobre o estado democrático actual: a conferência "Que democracia?", organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos na passada semana em Lisboa. E onde, talvez não por acaso, se contavam pelos dedos os políticos da nossa praça que estavam a assistir.

 

No meio da devastação económica a que a globalização e a austeridade radical conduziram a Europa, com a chegada de migrantes sem fim às fronteiras do outrora continente das luzes, com o fim do trabalho como elemento crucial da vida e da moral, não admira o advento do populismo, na forma de Donald Trump, Viktor Orban ou Marine Le Pen. Muito disso tem a ver com a própria lógica autofágica dos representantes dos cidadãos: a corrupção está a matar a democracia. E ela faz-se através de interesses pessoais ou cumplicidades partidárias e de concubinatos com interesses económicos. Que atiraram também o Estado para a "tirania das pequenas decisões", como lhe chamou Daniel Innerarity, nesta política de "reality-show", onde o sucesso substituiu a interrogação, onde a rapidez do twitter não dá espaço à argumentação. Última fronteira da liberdade, como chegou a ser visto, o mundo digital (e as redes sociais) foram vistas muitas vezes como um parque de nivelamento por baixo da reflexão.

 

A democracia parece cada vez mais um supermercado onde se compram e vendem produtos, muitos deles "low-cost". Ian Shapiro deixou na conferência sólidas reflexões sobre o estado da democracia hoje. Deu exemplo da ascensão de Trump e sobre as forças que lhe deram oxigénio "e não vão desaparecer": a revolução tecnológica (com a consequente e estrutural destruição do emprego), a globalização (onde o aumento do capital movimentado suplantou o do trabalho) e a concentração de capital no topo. Isso mudou as leis de gravidade da vida social. Shapiro deu um exemplo: há anos qualquer um de nós quando ia pedir um empréstimo para comprar uma casa entrava no banco da esquina e falava com o gerente que conhecia há anos; hoje isso faz-se através de software que não tem emoções nem conhece as pessoas. Deu outro exemplo sobre os EUA: a "democratização" das escolhas partidárias (com eleições directas) está a dar fôlego a políticos extremistas como Trump, escolhidos por simpatizantes que se guiam por lógicas rápidas de reflexão. Não há assim espaço para discussão séria ou sensata. Vivemos tempos difíceis para a democracia. E esta está a ser acantonada por pressões nacionais e globais e políticas irracionais. Foi por isso que numa conferência como esta foi confrangedor ver tão poucos políticos portugueses por ali.

 

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