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24 de Junho de 2020 às 20:25

A “lei-travão”

A iniciativa, por deputados, de propor uma alteração à proposta de Orçamento suplementar, que aumente a despesa no ano em curso, é tão inconstitucional como a iniciativa que mereceu o veto, e pelas mesmas razões.

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O Presidente da República vetou o diploma que alargava “o apoio extraordinário à redução da atividade de trabalhador independente aos microempresários e empresários em nome individual”, citando as “dúvidas de constitucionalidade, por eventual violação da lei-travão”. A dita “lei-travão” é o número 2 do artigo 167.º da Constituição, que nos diz que “os Deputados (…) não podem apresentar projetos de lei (…) ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado”.

Fez bem o Presidente em vetar. As “dúvidas de constitucionalidade” que refere – num eufemismo apropriado às relações entre órgãos de soberania – são na verdade certezas de inconstitucionalidade. A violação da lei-travão entra pelos olhos dentro. Se não fosse detetada aqui, também não o seria – parafraseando um sketch de Blackadder – se estivesse pintada de roxo a dançar nua em cima de um piano e a cantar “eu sou uma inconstitucionalidade”.

A norma constitucional em causa é peça central do equilíbrio de poderes entre Executivo e Parlamento desenhado pela Constituição. Os deputados têm, em sede de apreciação da proposta de lei de Orçamento, os mais vastos poderes de alteração, sem limitações que são comuns em outros países. Em contrapartida, o Governo tem o exclusivo de apresentar a proposta de Orçamento; uma vez aprovado este, tem também o exclusivo da iniciativa de propor a sua alteração; e tem a garantia de que, durante a execução do Orçamento, não podem ser aprovados aumentos de despesa ou diminuições de receita a não ser que a iniciativa venha do próprio Governo.

Esta última restrição – a lei-travão – é uma garantia de estabilidade para o Governo, que é responsável pelo cumprimento de metas orçamentais e planeia, para o ano económico, a realização da despesa e a cobrança da receita que foram autorizadas. É a garantia de que não terá de executar despesa adicional ou ficar sem receita necessária com que contava. Esta garantia, naturalmente, é na prática mais importante no caso de governos minoritários.

O problema que se coloca face à mensagem do Presidente é que este sugere que a apresentação de uma proposta de alteração ao Orçamento suplementar “pode, porventura, permitir ultrapassar essa objeção de constitucionalidade”. Ora, a lei-travão aplica-se tanto a iniciativas originárias dos deputados como a propostas de alteração, e aplica-se plenamente à discussão de um orçamento “suplementar”, dado que as medidas terão aplicação no ano económico em curso. A iniciativa, por deputados, de propor uma alteração à proposta de Orçamento suplementar, que aumente a despesa no ano em curso, é tão inconstitucional como a iniciativa que mereceu o veto, e pelas mesmas razões. Daí que o Presidente tenha colocado discretamente a condição de haver “virtual aceitação pelo Governo” nos elementos que permitiriam ultrapassar a inconstitucionalidade.

Confesso que tenho dúvidas sobre este momento de criatividade constitucional – não me parece que uma declaração do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares ou um acenar de cabeça, dizendo que o Governo não se opõe à proposta, permitam ultrapassar a proibição constitucional de iniciativa. Contudo, não existe mecanismo formal para o Governo fazer sua essa iniciativa em sede de discussão do orçamento suplementar. Uma vez entregue a proposta de lei – esta ou qualquer outra –, o Governo não tem iniciativa de alteração. Talvez devesse ter – o Regimento da Assembleia poderia estabelecer que o Governo pudesse propor alterações às suas próprias propostas. Tal disposição poderia solucionar diversas questões que a prática tem suscitado. Neste momento, contudo, tal não acontece, e o mecanismo de “virtual aceitação pelo Governo” a que se refere o Presidente, formalmente, não existe.

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