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04 de Dezembro de 2018 às 21:05

Tragédia mais tempo

Tudo o que é trágico mais cedo ou mais tarde fica engraçado ou pode gerar risos. É por isso que há judeus a fazer piadas que envolvem a Segunda Guerra ou brasileiros de esquerda já a troçar com o Bolsonaro.

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Uma das melhores definições para a comédia é a que estabelece que a dita nada mais é do que a tragédia mais tempo.

 

Explico: tudo o que é trágico mais cedo ou mais tarde fica engraçado ou pode gerar risos. É por isso que há judeus a fazer piadas que envolvem a Segunda Guerra ou brasileiros de esquerda já a troçar com o Bolsonaro.

 

É por isso que os velhos, quando bem-dispostos, não aqueles que ficaram ou sempre foram amargos, conseguem ser tão espirituosos. A velhice traz o distanciamento das coisas. Perdas antigas são relativizadas, inimizades deixam de fazer sentido, dívidas são esquecidas. O importante é viver e deixar viver.

 

A recente morte de Bernardo Bertolucci fez-me meditar sobre isto, sobre o que aquele senhor de 77 anos pensava pouco antes de morrer sobre a própria trajetória artística. Será que ele ria do escândalo causado pelo seu afamado "Último Tango em Paris"?

 

Bertolucci foi um dos maiores realizadores do século XX. E a sua filmografia mais do que justificava um texto aqui neste cantinho dedicado a tratar sobre storytelling.

 

Porém retive-me na data de lançamento de um dos seus grandes filmes, "O Último Imperador": 1987. Fiz as contas: Bertolucci tinha apenas 46 anos quando o realizou.

 

Foi o suficiente para que num instante a imagem do cineasta ancião desaparecesse da minha cabeça e ficasse apenas a de um homem de meia-idade, bem mais jovem do que sou hoje.

 

Afinal, eu é que seria o velho ao lado de Bertolucci. E não vi muita graça nisso (falta, lá está, o distanciamento).

 

Sou de uma geração que vive numa constante mudança de expectativa de vida. Quando miúdo, quem tinha 40 já estava com um pé na cova. Quando cheguei aos 30, inventaram uma coisa chamada jovem adulto (que até hoje tento perceber o que isso quer dizer, mas aderi ao conceito sem fazer grande alarde).

 

Pelo que compreendo, não devo temer os 60. Se continuar a tomar todos os comprimidos e cápsulas que meus médicos recomendam, lá chegarei com mais energia do que o povo que hoje tem 25.

 

O parágrafo acima é (mais coisa, menos coisa) a premissa de uma série da Netflix recém-estreada, chamada "The Kominsky Method". Nela, acompanhamos os dissabores do Michael Douglas e do Allan Arkin enquanto idosos lúcidos e ainda ativos num mundo despreparado para gente como eles. Ou seja, gente como eu.

 

O que sentimos sobre o nosso envelhecimento é muito parecido com o que sentíamos em relação à puberdade. Há qualquer desajuste entre como nos vemos e como a sociedade nos vê. Negociamos essas perceções minuto a minuto. Sem chegar a resultados satisfatórios quase sempre. Daí grande parte da graça de "The Kominsky Method". Rimos desses estranhamentos. Rimos dos velhos e com os velhos. Rimos de nós mesmos.

 

Tragédia mais tempo. Será que Bertolucci pensava nisto quando bateu com as botas? A piada é que nunca iremos saber.

 

Ou como diria o meu Tio Olavo: "Não reclame de envelhecer. A alternativa é triste."

 

Publicitário e Storyteller

 

Artigo em conformidade com o novo Acordo Ortográfico

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