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18 de Novembro de 2020 às 09:20

Quando a verdade é uma teia de mentiras

Pois é, somos criados a acreditar em coisas que não existem como príncipes encantados, bruxas, sapos falantes, políticos honestos e amor verdadeiro. Não temos jeito. Somos animais narrativos destinados à extinção.

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Se quer perceber algo sobre o mundo real, se procurar bem, sempre encontrará a resposta na ficção. Engana-se quem pensa que “inventado” seja sempre sinónimo de “mentira”. Não há nada mais enganoso do que uma versão limpinha, racional, organizada da História (com “agá” grande).

Somos uma espécie confusa, com hábitos estranhos (acreditar em Deus ou deuses talvez seja apenas a mais notória esquisitice), com uma grande tendência a autossabotagem e um nível de periculosidade grandioso.

A quarta temporada de “The Crown”, na Netflix, é um belo exemplo da tese de que a realidade é bem menos credível do que o seu espelho dramatúrgico. A nova entrega de “The Crown” pretende coroar (sem trocadilho) o percurso de uma das mais bem feitas séries históricas de sempre. Está lá tudo o que já nos acostumamos: guiões bem amarrados, diálogos brilhantes, direção de arte e figurinos de época perfeitos, atuações dignas de Óscar. Mas tudo isto não deixa de provocar um certo estranhamento.

Como a ação da maioria dos episódios agora ocorre num passado mais recente, o começo dos anos 80, ainda vivo na memória de quem tem cerca de 50, e dedica alguns capítulos inteiros à saga de Lady Di, uma das figuras mais escrutinadas dos últimos 50 anos, estamos sempre a comparar o que nos é mostrado com o que nos lembramos e damos como verdadeiro.

“The Crown” investe na coerência dos seus personagens. A rainha Elizabeth que agora encontramos é a mesma que conhecemos desde o primeiro episódio da primeira temporada. Ela erra do mesmo jeito, com as mesmas pessoas, tem as mesmas dúvidas interiores e os mesmos laivos de humanidade que nos impedem de a considerarmos uma vilã de telenovela. Porém, é dela que emana todo o mal que acomete as pessoas à sua volta.

Engana-se quem pensa que a série é uma espécie de versão monárquica de “House of Cards”. O que temos aqui, ainda mais nesse quarto tomo da obra, é um tratado sobre o que é família, os seus problemas, as suas complexidades. No caso, temos um agregado familiar extremamente disfuncional, uma mãe que não sabe amar, um pai que não sabe ser pai, casais que não se suportam, filhos desajustados por terem sido criados por analfabetos afetivos.

Temos pena daquela gente toda. Quer dizer, temos pena até à página dois. Quando empatizamos ao máximo com eles, o sangue azul vem sempre mais ao de cima e somos recordados que não passam de figuras arrogantes, esnobes, anacrónicas por opção e prazer.

A série tem um ponto de vista ambíguo. De certa maneira, reforça a importância que a família real tem para que a Inglaterra não imploda enquanto nação. Por outro, revela-nos que tudo aquilo não passa de teatro barato (ou caro para os contribuintes ingleses).

Em dado momento, durante uma viagem à Austrália do casal Charles e Diana, o primeiro-ministro daquele país pensa em voz alta: “O que é a força dos contos de fadas! Lady Di é uma princesa tão perfeita e charmosa que cativou os corações dos australianos a ponto de aceitarem a coroa inglesa por muitos mais anos.” Dito e feito.

Pois é, somos criados a acreditar em coisas que não existem como príncipes encantados, bruxas, sapos falantes, políticos honestos e amor verdadeiro. Não temos jeito. Somos animais narrativos destinados à extinção.

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Homer Simpson: “Eu não estava a mentir. Eu estava a escrever ficção com a boca.”

 

 

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