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06 de Novembro de 2019 às 09:10

A vida nos tira o que o cinema nos dá

Cinema é magia, em todos os sentidos, inclusive naqueles que remetem para engodo, para engano. E o que vemos no écran durante mais de três horas é uma sublime expressão do dom de iludir.

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"Em Roma, sê romano", diz o provérbio. "Em Hollywood, vá ao cinema", digo eu sempre que passo alguns dias em Los Angeles. E é o que ando a fazer regularmente nesta última semana.

 

Dei sorte, apanhei uma safra interessante. Ainda não havia assistido ao "The Joker". Valeu a espera. O filme é melhor do que o burburinho criado ao seu redor. Há ali pano para manga. Em breve, numa das próximas crónicas retorno ao tema.

 

Antes tenho que dedicar-me ao mais novo Scorsese, "The Irishman", que já nasce vintage, que pude assistir num cinema de rua, no lendário e decadente The Egyptian Theater, outrora palco do lançamento de grandes glórias, hoje um recuperado, porém humilhado, lugar, uma ilha cercada por uma calçada pejada de estrelas mortas inscritas nas pedras e mendigos, cracudos e maluquinhos em geral em circulação.

 

Como se trata de uma produção Netflix, "The Irish- man" ganhou algumas poucas passagens em salas tradicionais nos EUA antes de tornar-se exclusiva em "streaming". Calhou-me a sorte de arranjar um ingresso já para o primeiro desses dias. O Natal este ano calhou-me a 1 de novembro.

 

Cinema é magia, em todos os sentidos, inclusive naqueles que remetem para engodo, para engano. E o que vemos no écran durante mais de três horas é uma sublime expressão do dom de iludir.

 

De Niro, Joe Pesci, Pacino aparecem com idades físicas diversas, às vezes mais velhos do que são, quase todo o tempo mais novos algumas décadas, graças ao recurso da maquilhagem digital. O resultado não é perfeito, mas anda perto. Qualquer pequena falha é grandemente compensada pelo trabalho dos atores. Eles acreditam nos seus personagens por inteiro, mesmo quando o script diz que têm 30 anos e nós, por tabela, também.

 

Quem realmente acredita na história que está a contar é Scorsese. Que bom ver um autor sem medo de ser ele mesmo. Aos 76 anos, Martin continua com o vigor daquele rapaz barbudo e cocainómano que já foi um dia.

 

"The Irishman" não tem medo de ser uma espécie de reboot de "Os Bons Companheiros". E isso é uma grande qualidade. A sua montagem seca e sincopada, regada com grandes hits da história da música pop, traz-nos ecos de um tempo em que cinema era cinema e não um parque temático projetado na parede.

 

Há, claro, um clima de fim de festa. Em dado momento, De Niro encontra-se abandonado no quarto de um asilo, o seu interlocutor (que não vemos) vai-se embora. De Niro pede para que deixe a porta entreaberta. Olhamos, pela fresta que resta, o corpo do velho ator desgastado pelo tempo e sentimos uma pergunta no ar (feita por De Niro, pelo seu personagem e, principalmente, por Martin Scorsese): "valeu a pena contar todas essas histórias?".

 

Sim, valeu. Para mim, valeu. Como valerá sempre. Recomendo assim pipocas e "The Irishman", em breve, já que não vai dar no cinema, no sofá mais próximo do seu lar.

 

Ou como diria o meu Tio Olavo: "A vida nos tira o que o cinema nos dá".

 

Publicitário e Storyteller

 

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