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01 de Outubro de 2019 às 19:17

A arte de perder

Há os que se especializam em trapacear falhanços. Há quem minta no currículo, há quem crie uma realidade paralela na própria cabeça, transformando derrotas em vitórias mal compreendidas.

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Tantos livros, tantas páginas, tantas árvores cortadas para que sejam impressas folhas e folhas de papel a explicar a incrível arte de ganhar. E no entanto, entretanto, contudo, de que vale a bula se o remédio é mau?

 

Ganhar, de certa maneira, é pouco (ou, se preferir, poucochinho). Ganha-se por mérito, mas também se ganha por sorte, ou a roubar, a trapacear, a iludir, a inventar. Já perder, não, perder é sempre obtusamente complicado. Não conheço quem venda a mãe para garantir uma derrota. Nunca ouvi falar de alguém a pavonear os seus fracassos. Fernando Pessoa dixit: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada/Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo."

 

Inclusive, há os que se especializam em trapacear falhanços. Há quem minta no currículo, há quem crie uma realidade paralela na própria cabeça, transformando derrotas em vitórias mal compreendidas.

 

O difícil é perder perdendo. Perder sem desculpas, admitir a perda, ligar para o adversário a dar parabéns pela conquista, lamber as feridas e seguir adiante. Como é difícil, como é impossível, como se "perder" não fosse o sinónimo perfeito para o verbo "viver".

 

"A arte de perder não é nenhum mistério/tantas coisas contém em si o acidente/de perdê-las, que perder não é nada sério./Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,/a chave perdida, a hora gasta bestamente.

 

A arte de perder não é nenhum mistério./ Depois perca mais rápido, com mais critério: / lugares, nomes, a escala subsequente/da viagem não feita./ Nada disso é sério./Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero /lembrar a perda de três casas excelentes".

 

A cada workshop, a cada seminário, a cada guru formado por correspondência, a cada post no Instagram de um "influenciador" (nunca na história da humanidade as aspas foram tão precisas) a arte de ganhar é contrabandeada em meio a sorrisos, aforismas e fotos de batizados e casamentos.

 

Nas empresas, há balões de gás, abraços, gritos e palmadas nas costas quando se ganha uma conta, um projeto, um objetivo, um bónus. Mas na hora da perda, não. Há silêncios e omissões. Criámos uma cultura organizacional infantilizada, em que não há aprendizados na derrota, até porque não há derrotados. Quando muito, há responsabilizados, zumbis à espera que os pescoços sejam cortados por um machado ou de uma visita ao RH para negociar as saídas.

 

"A arte de perder não é nenhum mistério./Perdi duas cidades lindas. Um império/que era meu, dois rios, e mais um continente./Tenho saudade deles. Mas não é nada sério. / Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo, que eu amo)/não muda nada. Pois é evidente/que a arte de perder não chega a ser um mistério/por mais que pareça muito sério".

 

O poema que ilustra esta crónica foi escrito por Elisabeth Bishop, escritora americana, considerada uma das mais importantes poetisas da língua inglesa do século XX. Apesar de conhecer a autora, não conhecia este texto. Ele apareceu-me no lugar mais incomum, na fala de uma personagem, em meio de um capítulo de uma telenovela brasileira. Achei curioso. Como pode um folhetim popular oferecer mais conteúdo de reflexão do que os últimos vinte ou trinta vídeos de TEDx a que assisti?

 

Talvez porque numa sociedade governada pelo botão de like, há Prozac demais e poesia de menos.

 

Ou como diria o meu Tio Olavo, a citar Clarisse Lispector: "Perder-se também é caminho." 

 

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