Opinião
Pequenas palavras de pequena identidade
A minha tia Lucinda, parteira, grave e eficaz, pregou-me um par de estalos nas nádegas e desatei logo a berrar. Nasci, pois, a levar pancada e a protestar. Pela vida fora nunca deixei de o fazer; quero dizer: de protestar.
As regras da arte recomendam que quem, como eu, neste caso, apoia uma das candidaturas em parada, deve reservar-se de escrever notas políticas. Nem todos o fazem, sei-o. Mas eu sou de outro século e educado por outras normas, e já estou velho para mudar. Em todos os aspectos e sentidos. Batucarei as minhas habituais crónicas de hábitos e costumes a partir da próxima semana. Assim é que deve ser.
A verdade é que um leitor da Maia, um maiato, portanto, pergunta-me, entre outras, de ordem mais pessoal, se sou do Benfica. "De esquerda, sei que é e você não o esconde. Mas de que partido?" Hesitei em esclarecer a bizarra curiosidade de Manuel Martins Nunes de Albuquerque, o tal leitor. Mas enfim… Não milito em nenhum partido, embora o tivesse feito durante anos, e anos muito perigosos. Agora, faço-o de outra maneira: a escrever. Detesto esta direita encastoada em si mesma, sem grandeza nem espírito de missão, apenas guiada pelos interesses de casta e pelos imperativos do dinheiro. Já votei no Mário Soares, no Guterres, no João Soares, amigo muito chegado, no Sampaio. As circunstâncias históricas e, até, razões de amizade, impeliram-se a essas decisões. Na CDU, cujos princípios me agradam, fui, muitas vezes, companheiro de estrada. É lá que estão muitos dos meus companheiros de sempre, aqueles que marcaram a luta antifascista e se propuseram a mudar o mundo para o melhorar. Não ganhámos. Mas também não perdemos. A vida é composta de altos e baixos, e os vencedores de agora, pobres e desgraçados vencedores, não dispõem da razão e do afecto para se constituírem como património cultural - e muito menos moral.
Fora isto, nasci em frente do campo das Salésias, na rua dos Quartéis, no rés-do-chão de um prédio de azulejos azuis e, segundo narradores da família, num silêncio preocupante. Para despreocupar os circunstantes, a minha tia Lucinda, parteira, grave e eficaz, pregou-me um par de estalos nas nádegas e desatei logo a berrar. Nasci, pois, a levar pancada e a protestar. Pela vida fora nunca deixei de o fazer; quero dizer: de protestar.
Acontece que na mesma data fausta do meu nascimento, e exactamente no mesmo trémulo instante em que eu berrava, um berro unânime subia do campo das Salésias. A princípio, a família, atónita e jubilosa, pensou ser aberraria colectiva um evidente sinal de regozijo e alvíssara pelo recém-nascido. Mas o grito esplendente e enorme celebrava um golo do Belenenses nas redes do Carcavelinhos.
Os anos vararam os anos e sempre ouvi os da minha tribo, inchados de orgulho de bairro, dizer-me:
- Nasceste quando o Belenenses meteu um golo!
Advertência certamente importante, que talvez fosse a recomendação discreta de que eu deveria meter muitos golos na vida. Pobre de mim! Fiquei-me por isto: um homem de cabelos brancos, destinado a perfilar palavras modestas, um vago, confuso e incompetente senhor português. Não sei, e se calhar nunca vou saber, quantas vezes, desde aquele ano e até hoje, o Belenenses meteu a bola em rede alheia. Sei, isso sei, que o Belenenses e eu temos uma história cruzada, pejada de sonhos desmesurados, de esperanças derrubadas, de recomeços, de tombos e de pequenas sagas.
Clube de bairro, para enlear o nosso coração de gente de bairro. Clube que teve o Pepe, o Capela, o Vasco, o Feliciano, o Rafael, e o Amaro, ah! gandAmaro!, e o Matateu, ah! gandaMatateu!, pessoal do melhor, dos bairros e da sanzala, que são os sítios onde se sonha melhor porque são os sítios onde se sonha em grande. Eles, às vezes, pelos fins de tarde, depois do jogo, eram bem capazes de se sentar nos bancos corridos das tabernas de Belém e da Ajuda, conversando mansamente com ao amigos. E a gente sabia deles, ganhavam mal, andavam com as redes às costas, alinhavam-se numa integridade e numa dignidade que impediam qualquer espécie de traição.
É assim, meu caro leitor maiato: para mim, tudo começou em frente do campo das Salésias. Aprendi com eles aquela altivez e grandeza que os induz a não desistir, mesmo quando tudo parece perdido.
b.bastos@netcabo.pt