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Os dias da ira, de Miguel Torga, e nossos

As deficiências culturais correspondem à insignificância de uma época na qual tudo parece permitido, inclusive o desprezo pelo humano. (…) Vou, amiúde, aos clássicos antigos e contemporâneos, talvez para me refrescar da ignorância e da pesporrência circundantes.

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A avaliação aos professores talvez devesse ser alargada, pelo ministro Crato, aos membros do Governo de que faz parte. A sabatina daria resultados surpreendentes. Já não falo, por pudor, à avaliação acaso aplicada ao dr. Cavaco. Como se sabe, este ignora quantos Cantos tem "Os Lusíadas" e estabelece a mais atroz confusão ente Thomas Mann e Thomas More. Esta gente que nos governa trocou as humanidades pelos números, e se insisto nestas anotações é porque as deficiências culturais correspondem à insignificância de uma época na qual tudo parece permitido, inclusive o desprezo pelo humano.


Vou, amiúde, aos clássicos antigos e contemporâneos, talvez para me refrescar da ignorância e da pesporrência circundantes. E, assim, há dias, fui ao Miguel Torga, que a Dom Quixote teve a feliz ideia de reeditar, já há anos. E lembrei-me de um episódio ocorrido, também há anos, com uma pequenota, feiota e atrevidota, agora senhora de meia-idade, que pinta o cabelo com descuidada minúcia. A então raparigota, onzenada por um intriguista matreiro, escreveu, no semanário onde ainda parece esgaravatar prosa, um texto miserável, por insultuoso, para o grande autor.


É verdade que Miguel Torga, pelo feitio rezingão, pela independência moral e ideológica, e por um carácter pouco dado à socialidade, não arregimentava muitos amigos. Um dos últimos foi Paulo Quintela, grande professor de Coimbra, com o qual também se azedou. Mas Torga deixou páginas admiráveis de limpidez e grandeza, de uma modernidade sem par, e propostas de estudo como nenhum outro escritor do seu tempo. Lembro os dezasseis volumes de o Diário, onde se recolhem alguns dos mais belos poemas da língua portuguesa; "A Criação do Mundo", "O Senhor Ventura", que esteve para ser adaptado ao cinema por Fonseca e Costa; tudo num idioma marcado por um rigor, um halo poético e uma criatividade absolutamente invulgares.


Torga pagou caro a sua feroz independência, o seu acrisolado gosto pela liberdade e as raízes portuguesas que sempre defendeu. Foi preso, esteve nas masmorras do Aljube e, mesmo ali, compôs poemas à liberdade que fazem parte do armorial da Resistência ao fascismo. Falei uma vez com ele e recebeu-me, no consultório da Portagem, com desconfiada cordialidade, mas evidente simpatia. Um dia, hei-de contar um episódio então ocorrido, que só não estilhaçou a minha estima por ele porque a admiração pelo poeta era superlativa.


Foi este sufoco social, intelectual, político e moral sob o qual estiolamos que me induziu a ir à estante e à prateleira tirar o poema "Dies Irae", do livro "Cântico do Homem", incluído na "Poesia Completa" da Dom Quixote, e que constitui um retrato cruel dos tempos da ditadura, tão semelhantes aos de hoje.


Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.


Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje


Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.


Oh! Maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas.


Miguel Torga, a obra magnífica deste autor singular, está cheia de apelos à dignidade do homem; à resistência, mesmo que tudo pareça perdido; à grandeza do sonho e à consistência das esperanças. Nada daquilo que a senhora de cabelo pintado e meninge curta esgaravatou ou tem esgaravatado possui a mínima comparação com o sopro do homem que injuriou. É, também, em memória do grande poeta e prosador, e em homenagem aos que não desistem, mesmo que tudo pareça desmoronar-se, que escrevi esta crónica.

 

 

b.bastos@netcabo.pt

 

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