Opinião
O meu 10 de Junho, na Guarda
Aquele 10 de Junho foi um lugar de afectos, de relações, e não uma parada guerreira, como, depois, a festa se deixou contaminar. Regressei a Lisboa e o meu pai estava à minha espera para morrer. Ainda me fez um sinal, da cama onde se encontrava prostrado, e tenho quase a certeza de que me sorriu.
Queria passar por Coimbra, queria ver, conversar e entusiasmar-me com o meu amigo Joaquim Namorado, ouvir-lhe o vozeirão e o riso sarcástico. Ia com o José Antunes, camarada de andanças pelo País, desejava que ele conhecesse o Joaquim Namorado, e levava no carro o Rocha Pato, jornalista dos mais íntegros e competentes, que chefiava a delegação do Diário Popular em Coimbra. Não estava particularmente interessado naquela reportagem, mas sempre beberia uns copos e comeria umas belas pratadas com camaradas do mesmo ofício. Ia para a Guarda, 10 de Junho de 1977, ainda o 25 de Abril fazia bruxulear umas luzes, e já lá estavam o Rogério Rodrigues, o António Colaço, o Afonso Praça, gente do melhor.
O Abel Pereira, que chefiava a Redacção do Diário Popular, recomendara-me: uma página, página e meia, não mais. O 10 de Junho mudara de nome, deixara de ser o Dia da Raça para se chamar Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades. O meu desinteresse profissional cedo se alterou. Assim que cheguei à Guarda, dei logo de caras com o Tony de Matos, ele próprio emigrante, e falámos com a efusão de velhos amigos que tinham deixado de se ver. A cidade estava cheia de portugueses emigrados e o ambiente era de comoção. Comecei logo a trabalhar nos rostos e nas vozes que se ouviam, sotaques estranhos, conversas avulsas.
Comecei logo a trabalhar nas comoções, porque eu próprio estava comovido. O Zé Antunes fotografava os rostos, que pareciam cópias dos rostos pintados por Nuno Gonçalves. Uma gente antiquíssima, que vivia muito longe, e que regressara à pátria, por breves dias, a convite do Governo, para este estranho 10 de Junho. "Preciso de mais páginas", disse eu ao Abel. O Rocha Pato entrevistara numerosos compatriotas e as histórias daquela gente eram grandiosas na sua genuína simplicidade. Aquela gente era a minha gente. E eu sentia-o como se não devesse abandoná-los. "Quantas mais páginas?", perguntou o Abel Pereira. "Quero fazer um suplemento. Quero fazer isto à minha maneira."
Vinte e quatro páginas, se bem me lembro. O Zé Antunes e o Rocha Pato também estavam emocionados. Éramos iguais, famílias nunca desavindas e semelhantes nas dores e nos sofrimentos. Telefonei à Isaura, para saber dos miúdos, como o fazia sempre, ao fim da tarde. E ela: "O teu pai foi hospitalizado, nos Capuchos, mas disse-me para não interromperes o teu trabalho. Primeiro está o teu trabalho, disse ele. E eu vou lá vê-lo, está descansado."
Ramalho Eanes, o Presidente da República, apareceu no improvisado gabinete de Imprensa. Já sabia do ocorrido. "O seu pai, como está?" Nessa mesma tarde, Jorge de Sena, o grande Jorge de Sena, faria um discurso empolgante, que deveria ser constantemente editado pela excepcional qualidade do texto, pela visão profética de um país que acabara de ser livre, e pelo elevado grau de emoção. Sena advertia-nos de que a liberdade não é coisa simples, e que os perigos que nos cercavam eram imensos. O mapa dos nossos desesperos e euforias, em metáforas admiráveis e em afirmações claras.
O meu pai estava a aguentar-se, dizia-me a Isaura, repetindo os avisos que ele lhe confiara: "O Armando que faça o trabalho que tem de fazer." Ainda nesse dia conversei com Jorge de Sena e sua mulher, Mécia de Sena; e falei com Ramalho Eanes do empolgante discurso do grande poeta. Os meus amigos Praça, Rogério, Colaço e outros, sabedores de que meu velhote não estava bem, rodeavam-me de atenções. Eu sentia-me com a coragem a abandonar-me, mas estava feliz com o trabalho que fizera para o jornal, com o Zé Antunes e com o Rocha Pato. E não só. Fizera vários amigos, entre os quais Ramalho Eanes, e já lá vão trinta e sete anos!
Aquele 10 de Junho foi um lugar de afectos, de relações, e não uma parada guerreira, como, depois, a festa se deixou contaminar. Regressei a Lisboa e o meu pai estava à minha espera para morrer. Ainda me fez um sinal, da cama onde se encontrava prostrado, e tenho quase a certeza de que me sorriu.
Tudo aquilo se enquadrava numa pureza que se perdeu. As palavras do Sena queimam, ainda hoje, como brasas. As de agora, oficiais e oficiosas, tristes, monótonas, cravejadas de vulgaridade e mentira, apenas servem para comentadores fatigados e sem brilho ou emoção debitarem nada ou coisa alguma.
Como se viu.