Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
01 de Novembro de 2013 às 11:22

Histórias avulsas de um dia vulgar

Agora, que os dias começaram a estar mais frios, vai tomar o café na leitaria onde costumava encontrar-se com o Augusto Abelaira.

  • ...

Agora, que os dias começaram a estar mais frios, vai tomar o café na leitaria onde costumava encontrar-se com o Augusto Abelaira. Recorda o olhar bondoso e paciente do velho amigo, a qualidade da sua conversa, a excepcional cultura que nunca demonstrava, por modéstia e humildade, a tenaz força da sua amizade e a grandeza das suas recusas. Pensa: começa a abrir-se um deserto imenso em minha volta; um rol quase infindável de companheiros que foram indo, e cujas sombras pairam na memória, como uma lâmina afiada que dói e assusta.


O Abelaira sentava-se naquela mesa onde a claridade era maior, e escrevia, como sempre fizera, noutros cafés. Parte substancial dos seus grandes romances foi assim composta. O João José Cochofel, outro dos que foram para o limbo do esquecimento, escreveu que a obra literária do Abelaira era "mozartiana", pelas características de aparente leveza do texto. Mas a grande crítica do salazarismo e da burguesia impante à volta do ditador contêm-se nesses livros admiráveis, inteligentes e únicos.


O Mário Zambujal telefonou-me há pouco. Anda acabrunhado e triste como toda a gente. Notei-o pelo tom de voz, pelo registo pesado das suas frases, de hábito vivas e coloridas de amizade. O Zambujal não é homem para queixumes ou lamúrias: o recato e a discrição fazem parte do seu modo. Também ele conheceu o Abelaira e di-lo, amiúde, quando a ocasião se proporciona, demonstrando a admiração por um dos grandes do nosso tempo comum. Digo-lhe: "Ando com o envelhecimento em cima das costas, mas o pior são as pernas." As pernas, ainda não há muito tempo tão lestas e ligeiras e, agora, tão densas e maciças. Mas saio: vou até à pastelaria, sento-me no banco do pequeno jardim perto de onde moro, e passeio um pouco e devagar com a minha mulher. Rimo-nos das minhas dificuldades e dos achaques dela. E ela costuma dizer: "É o preço de chegarmos a esta idade." E eu respondo-lhe: "Não é só isso; é este tempo desafortunado, este Governo medonho; mas continuo com esperança." Ela afaga-me carinhosamente: "Sempre andaste cheio de sonhos…".


É. É isso mesmo. Conseguiram, por vezes aborrecer-me, sempre momentaneamente, nunca me deitaram a abaixo, nem mesmo quando me negaram emprego, por exemplo, no "Público", e o director de então disse ao João Mesquita que eu "era todo a favor da Revolução Cubana." Era e sou. Traduzi livros em dez dias, tinha três filhos, e a minha mulher chorava em silêncio, vendo-me horas a fio, curvado na máquina de escrever, a batucar nas teclas até os dedos doerem. Ainda bem que estas coisas aconteceram. Digo agora. Mas foi doloroso. Aprendi que o osso nunca quebra pelo mesmo sítio, e assisti, sem gozo nem alegria, sem rancor nem ressentimento, ao trambolhão moral desse que tal, desses que tais.


Nunca pares de escrever, incito-me a mim próprio, e assim tem sido. Faço-o diariamente, para não perder a mão. Escrever é um ofício e uma arte por igual intimidantes, disse-o, há dias, a uma jornalista do Negócios e aqui o repito. É um trabalho bom. Porém, devo dizer aos meus Dilectos, de que, nesta etapa, precisava de ter uns dinheiros a mais, para voltar a ler os meus clássicos, com vagar a prazer. Tenho de entremear a leitura com a escrita, mas lá vou.


"Temos de nos aguentar!" digo, frequentemente, talvez para me animar. Mas os dias são penosos, já assisti a muita coisa, nunca a tenta mentira, nunca a tanto mentiroso e, pior ainda, ao apoio sórdido que lhes é dado por gente miseravelmente sem escrúpulos. Não sei se disse isto ao Zambujal, se o não disse devia de ter dito. Já nem ligo a televisão, a não ser no número 157, para ouvir música clássica, sobretudo ópera. O meu pai era tipógrafo, adorava ópera, ensinou-me a amá-la, e levava-me para as galerias proletárias do Coliseu, repletas de uma gente popular, enlevada com o que escutava. Também acabaram as óperas no Coliseu, também.


Tocam à porta. "São os nossos netos" diz a Isaura. O dia correu muito bem.

 

 

b.bastos@netcabo.pt

 

 

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio