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Experimentação em larga escala

Os bancos centrais não vão conseguir sair das suas políticas acomodatícias nos próximos anos e terão de continuar a intervir nos mercados diariamente, resultando em juros muito baixos e persistentes e repressão financeira para os aforradores.

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Entrámos numa fase de experimentação sem precedentes à escala global. Primeiro do lado dos bancos centrais: nunca foram tão longe! Entre março e outubro de 2020, o balanço da Reserva Federal (Fed) dos EUA subiu de cerca de 4.300 para 7.150 mil milhões de dólares, o do Banco Central Europeu (BCE) de 4.900 para 6.700 mil milhões de euros. O balanço do BCE representa agora cerca de 66% do PIB da Zona Euro, o da Fed 37% do PIB dos EUA, o Banco do Japão 136% e o Banco da Inglaterra 35%, números que ainda devem aumentar até o final do ano com a segunda vaga da pandemia.

Sabíamos que o seu arsenal de instrumentos (toolbox) estava bem abastecido. Mas os banqueiros centrais nunca foram tão inventivos e chegou a hora de reverem as suas estratégias de política monetária. A Fed foi a primeira a desenhar e anunciar a sua nova política na reunião de Jackson Hole em agosto. Embora esperada, esta mudança marca uma viragem nos dois pilares do seu mandato – emprego e estabilidade de preços – uma vez que, no futuro, a Fed vai focar-se na fraqueza do mercado de trabalho e definir para si própria um objetivo de inflação-média. Esta nova abordagem, que pode inspirar o BCE, não pode ser posta em prática rapidamente, mas levanta já questões – nomeadamente, quanto à definição de metas de inflação.

As políticas fiscais entraram também em território desconhecido. A unidade de cálculo dos planos de recuperação é agora de cem mil milhões! Segundo o Fundo Monetário Internacional, as medidas tomadas pelos governos para amortecer o choque da crise sanitária alcançaram um total de 12 biliões de dólares (cerca de 10,2 biliões de euros) em todo o mundo. Em resultado, espera-se que a dívida pública alcance um nível recorde de quase 100% do produto interno bruto global até 2020. A crise abalou todos os princípios de austeridade fiscal. Na Europa, o pacto de estabilidade foi suspenso na primavera para permitir aos Estados-membros afrouxarem o controlo sobre os gastos públicos até 2021. Até a Alemanha ratificou o abandono do rigor orçamental e do seu “travão à dívida”, consagrado na lei fundamental da Alemanha desde 2011 – e que proíbe o governo de pedir emprestado mais de 0,35% do seu PIB por ano. Finalmente, era imaginável ouvirmos um dia o FMI a aconselhar os países a gastarem a todo custo, mesmo significando isso o aumento dos deficits e da dívida?

Do lado da inovação, a União Europeia não deve ficar para trás, já que os seus dirigentes acordaram em julho passado um plano de recuperação massiva da economia do bloco com a ajuda de um fundo de 750 mil milhões de euros financiado pela emissão de dívida comum, tema que chegou a ser tabu.

A rutura é, portanto, total, tanto a nível económico e financeiro como a nível político e social, com consequências estruturais a longo prazo.

A questão da dívida é a mais preocupante, principalmente na Zona Euro. Na verdade, a crise sanitária é um catalisador de divergências entre os países. A Alemanha, que acumulou superavits orçamentais nos últimos anos, rompeu com a sua ortodoxia nesta área. Mas, mesmo que o rácio da dívida salte mais de 15 pontos em relação ao ano passado, ficará limitado a 75% do seu PIB em 2021. Em comparação, a Itália prevê um défice de 12,8% e uma dívida de quase 160% do PIB, a dívida pública de Espanha saltou para os 110% do PIB, e França estima um deficit de 6,7% e uma dívida de 120% no final de dezembro. Tranquilizados pela presença do BCE através do seu programa PEPP, que tem permitido o estreitamento dos spreads desde março, estes rácios da dívida pública não constituem, de momento, uma preocupação para os mercados. Mas por quanto tempo o BCE, já muito além do seu mandato, será capaz de resistir?

Para os mercados, este mundo turbulento está a causar uma perda de pontos de referência, já que a presença diária dos bancos centrais desfoca os sinais e a busca por rendimento empurra a desconexão entre os preços dos ativos e a realidade económica. Isso também levanta uma série de questões: há um limite para o tamanho do balanço de um banco central? O que vai ser feito com este muro de dívidas? Qual pode ser a estratégia de saída dos bancos centrais? E em que prazo podemos esperar o regresso da inflação?

Temos uma certeza: os bancos centrais não vão conseguir sair das suas políticas acomodatícias nos próximos anos e terão de continuar a intervir nos mercados diariamente, resultando em juros muito baixos e persistentes e repressão financeira para os aforradores. Este contexto deve continuar a fomentar um apetite pelo risco, o que pode originar bolhas e desequilíbrios financeiros, no fim das contas com o aumento das desigualdades e, do lado político, o aumento do populismo. Quanto ao resto, hoje temos mais perguntas do que respostas.

 

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