Opinião
Eles têm o poder. Nós temos a razão
Não sei se era velho. Sei, isso sei, que estávamos cansados dele e do que para nós representou de fome, de desemprego, de miséria, de desespero sem fim, de mentiras e de embustes.
Não sei se era velho. Sei, isso sei, que estávamos cansados dele e do que para nós representou de fome, de desemprego, de miséria, de desespero sem fim, de mentiras e de embustes. Se não houver alterações substanciais, este, que chegou, será mais e pior do mesmo. Portugal parece alheado: andou numa fona de gastos, e a correria às compras deu a ideia de que a normalidade era a regra. A alegoria segundo a qual os bárbaros estão às portas de Bizâncio e os bizantinos discutem o sexo dos anjos, reformula, uma vez mais, a imperdoável e sempre repetida negligência dos caracteres.
2013 foi o que foi porque o permitimos. 2014 adivinha-se o que será e nós andamos às compras. Informam graves estudos de que, a partir de agora, desempregados com 40/45 anos nunca mais encontrarão ocupações. Os celtas antigos atiravam os velhos das falésias, por inúteis; os modernos matam-nos de modo mais sofisticado, lentamente, com o fogo da mais cruel das decisões: "desocupam-nos." Os "desocupados" formam legiões sem destino e sem esperança.
Não preciso de discutir a situação emergente para chegar à conclusão de que a nova ordem económica internacional tem causado um desespero tão atroz e imundo que só a indiferença dos mandantes torna mais sórdida. "Vamos no bom caminho", diz, com treinada voz de tenor melífluo, o extraordinário dr. Passos Coelho. E o dr. Cavaco, a maior tragédia que nos calhou, nos últimos quarenta anos, aplaude, sustenta e concorda.
Ninguém diz a ninguém que o custo desta aventura é um peso inominável e arrasta consigo a própria noção de pátria. Um milhão e meio de desempregados; 140 mil jovens que deixaram o País por impossibilidade de viver; redução drástica de estudantes no secundário e no superior; despovoamento acentuadíssimo do interior; riqueza obscena de meia dúzia de senhoritos; lucros faraónicos de empresas e depredação, cada vez maior, das possibilidades naturais do país. A acumulação de funções e de cargos multiplica-se. Apenas um exemplo: corre pela internet, uma informação pormenorizada das incumbências desempenhada pelo ministro Aguiar-Branco, aquele do imbróglio dos Estaleiros de Viana do Castelo. É uma lista vergonhosa e de certa forma ilustrativa da imoralidade que grassa pelo País. O caso não é único: mas é exemplar.
Quando Passos e o dr. Cavaco decidiram discretear, em funestas exortações de fim-de-ano, a desvergonha atingiu, pelas omissões deliberadas e pelas contorções à realidade circundante, uma dimensão de nojo. O Papa Francisco, que parece ser o último arrimo de uma humanidade desesperada, tem dado a entender que a luta contra a agressão do dinheiro e a perversidade do lucro põem em causa a própria religião como expressão de identidade. Infelizmente, a Igreja portuguesa arredou-se das exortações papais e do exemplo que, notoriamente, o Sumo Pontífice está a dar. A última homilia e as declarações posteriores de patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, vão em direcção de uma esquivada ambiguidade. Digo-o com pesar: conheço o antigo bispo do Porto, carteei-me electronicamente com ele, estive num debate promovido pelo Montepio sobre exclusão social, e lamento que o espírito de abertura intelectual, política e social que manifestou esteja, agora, silenciado e evasivo. A voz de um homem como Manuel Clemente, culto e lido, é imperiosa; porém, neste momento, está a baralhar, singularmente, a relação de esperança que poderíamos ter com a Igreja de Francisco.
Os tempos não parecem propícios às grandes fraternidades, agora, que a invasão dos bárbaros avança com inclemente vigor. Mas não podemos desistir, não podemos capitular, não podemos abandonar o terreno onde se dirimem as questões centrais da civilização. Nem tudo está perdido, porque nos resta a força da nossa razão e o poder imparável daquilo que queremos.
b.bastos@netcabo.pt