Opinião
Do coração português
Temos, pois, uma tradição de solidariedade que nem esta época mesquinha em que vivemos (com Passos Coelho a pechinchar o número de imigrantes que receberemos) consegue deprimir.
Parece que Portugal vai receber 1500 refugiados. Mesmo assim, Passos Coelho regateou o número porque a quota era maior. Por outro lado, a Câmara Municipal de Lisboa criará um fundo de 2 milhões de euros, para acudir a estes novos desesperados. Os portugueses têm uma bela tradição de acolhimento. Diria um amigo meu, "um coração do tamanho do pecado." Durante a Segunda Grande Guerra, receberam centenas, talvez milhares, não se sabe exactamente o número, de fugidos do nazismo, que estacionaram em Portugal. Uma das famílias que os receberam, com afecto e com ternura, foi a de Maldonado de Freitas, das Caldas da Rainha, gente republicana e declaradamente antifascista. Sei da história porque me a contou um querido amigo e grande repórter de O Século, o saudoso José Barão, também ele republicano e antifascista e homem de grande integridade moral.
Desse tempo infausto, no qual a grandeza assumia papel de saga, há um dos grandes romances de Alves Redol, "O Cavalo Espantado", que narra a vida dos refugiados em Lisboa, e as alterações de comportamento e de hábitos que introduziram na pacatez sombria da cidade. É um livro empolgante. O realizador de cinema José Fonseca e Costa projectou adaptar o romance ao cinema, e seria, certamente, um bom filme, pois embora seja uma pessoa de péssimo feitio e de atitudes soberbas, Fonseca e Costa é um excelente cineasta e, acaso com Seixas Santos, o único declaradamente "político", sem nunca abandonar o lado artístico.
Na verdade, vários municípios já se dispuseram a receber e a ajudar essa gente desgraçada, sem limites ou restrições de situação. Ao contrário de Angela Merkel, que só admite, na Alemanha, perseguidos políticos. Económicos, nem pensar. Como se as situações não estivessem ligadas e a fome e os infortúnios não fossem causas da mesma raiz. O insólito de isto tudo é que uma certa Esquerda embandeirou em arco com a decisão, muito unilateral, da chanceler.
A verdade, porém, é que o coração aberto dos portugueses se tem manifestado. E, já agora, nesta circunstância de relatos da solidariedade, desejo lembrar uma belíssima telenovela de Francisco Moita Flores, "A Raia dos Medos", sobre os reflexos da guerra civil de Espanha no nosso país, e as grandezas e misérias daí decorrentes. Moita Flores não foi maniqueísta, e procurou o justo equilíbrio da verdade com a ficção. Um trabalho primoroso, a vários títulos, que rejeita essas "mixurucadas" que as televisões, todas elas, nos impingem com um despudor que toca a pouca-vergonha. Algumas delas apresentam um lote de actores formidáveis, cujo texto os não merece.
Como estou em maré de me orgulhar do trabalho de muitos profissionais, refiro, aqui, as notáveis reportagens de José Manuel Rosendo, na RTP, sobre a tragédia dos refugiados. Há muito tempo que me não comovia com relatos daquela natureza e dimensão humana. Rosendo não é, apenas, uma câmara que filma: é um jornalista que, emocionando-se, nos emociona, contrariando essa bacoca tese da "distanciação", que fere a integridade do jornalismo.
Cartas de dois amigos
Nem a propósito: António Tavares-Teles, jornalista e velho companheiro, publicou a correspondência que seu pai, Francisco Tavares-Teles, travou com Alves Redol, quando este esteve no Douro, a fim de recolher elementos para o seu Ciclo Port-Wine. Como diz o António, "era no tempo em que os amigos escreviam cartas", e este acervo é de valor incalculável, porque além de revelar o "work in progress" do grande escritor, fala-nos dos seus problemas mais pessoais, numa abertura de espírito característica do grande romancista. Foi, para mim, um reencontro com um amigo e um português de lei.
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