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14 de Janeiro de 2021 às 09:20

Debates presidenciais. Quem guarda a democracia?

Faz falta a defesa dos valores democráticos, mas não é só no debate, muito mais do que isso, é urgente inverter – responsabilizar politicamente – os muitos comportamentos que indiciam autoritarismo. Todos parecem alienados.

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O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa votou a Constituição, a marca na face de Ana Gomes testemunha a sua luta pela Constituição, João Ferreira não estava lá e invoca a legitimidade revolucionária da Constituição. Tiago Mayan Gonçalves e Marisa Matias fazem leituras opostas da Constituição. André Ventura rejeita a Constituição.

Embora os candidatos tenham visões e propostas muito diferentes, todos, exceto Ventura, procuram o reconhecimento da sua autoridade política na luta, votação, ou defesa da Constituição. Alerta: uns mais do que outros.

O mito de que a legitimidade revolucionária da Constituição de 1976 é eterna mostra a grave alienação de muitos dos nossos políticos em relação ao povo português.

A crença na Constituição de 1976 como base do legítimo exercício de poder em Portugal corresponde a um dos três tipos ideais de Bruce Ackerman em “Three Paths to Constitutionalism...” (2015): o da legitimidade revolucionária (ou da resistência), tal como o das Constituições francesa e italiana dos pós-II Guerra. Segundo esta narrativa, no Momento um, movimentos revolucionários mobilizam-se contra o “status quo”, justificando os seus atos nessa mobilização; no Momento dois, os atos de resistência são convertidos numa Constituição que pretende evitar os abusos do passado. Nesse Momento, a autoridade dos líderes políticos emana do autossacrifício para estabelecer a nova Constituição em nome do povo.

Não é claro se todos os candidatos destas presidenciais entendem que a legitimação pela luta ou votação da Constituição perde significado com o passar das gerações, de candidatos e de votantes. Quando aparecem os “estranhos”, estes são convidados a abandonar ideias radicais e a entrar para o sistema, através de concessões estratégicas e pragmáticas. Com o seu charme, o Presidente Marcelo disse algo do género a Ventura: “Pois concorda comigo na diminuição do número de deputados, há que tempos o defendo.” O Presidente parece acreditar, ingenuamente, que Ventura entrará para o sistema.

Levitsky e Ziblatt, em “Como Morrem as Democracias” (2018), identificam quatro indicadores do comportamento autoritário, confirmados pelos desenvolvimentos trumpistas: 1) rejeição ou fraco compromisso com as regras do jogo democrático (rejeição da Constituição, restrição de direitos civis ou políticos básicos, recusa em aceitar resultados eleitorais credíveis); 2) negação da legitimidade de rivais políticos (descrição infundada dos opositores como subversivos, criminosos, ou como ameaça para a segurança nacional); 3) tolerância ou encorajamento da violência (laços a gangues armados ou organizações com comportamento violento ilícito); 4) prontidão para cortar as liberdades civis dos opositores, incluindo os media (aprovação de leis que limitem essas liberdades).

Levitsky e Ziblatt também demonstram com argumentos históricos que os extremismos não são integrados na democracia, pelo contrário, a tentação consumada de os partidos do centro os integrarem tem sido a causa, ao longo do século XX e até aos dias de hoje, para o surgimento de regimes autoritários.

Aplicando todos estes argumentos ao quadro político português, se a legitimidade constitucional é revolucionária, e se a sua validade depende da integração das novas gerações no sistema, é necessário entender que a integração de Ventura não irá acontecer.

A atual normalização dos populismos de direita tem diferentes causas: a dinâmica das redes sociais promove, por algoritmos, o discurso de ódio – mais atraente para os utilizadores e por isso mais lucrativo para os gigantes tecnológicos cuja atividade não está regulada pelos poderes públicos; a função de guardiães da democracia, desempenhada tradicionalmente pelos partidos, através do isolamento dos seus membros ou fações extremistas, está fragilizada pelo contacto direto (digital) entre populistas e eleitores; os extremismos de direita não são movimentos nacionais isolados, são fruto da globalização, e assentam em redes internacionais mais ou menos visíveis.

O risco de normalização dos populismos de direita em Portugal é acentuado: façamos os testes propostos por Levitsky e Ziblatt e encontramos indicadores de comportamento autoritário nos discursos levianos ou ideológicos em todos os partidos do espectro parlamentar. Em especial, discursos de negação da legitimidade de rivais políticos e ameaças às liberdades cívicas dos oponentes tornaram-se frequentes. Quando ideológicos, esses comportamentos invocam ou criticam a legitimidade constitucional revolucionária - que está a prazo. Quando levianos, qualquer cidadão comum entende a falta de coerência entre o apelo democrático e o discurso autoritário conjugado com falta de transparência e desresponsabilização política.

Esta ausência de atuação democrática coerente dos políticos do sistema facilita a perigosa desvalorização dos populismos de direita: quer pelos próprios partidos parlamentares do sistema, cientes da sua atuação incoerente, quer pelos eleitores.

Faz falta a defesa dos valores democráticos, mas não é só no debate, muito mais do que isso, é urgente inverter – responsabilizar politicamente – os muitos comportamentos que indiciam autoritarismo. Todos parecem alienados.

 

Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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