Opinião
Centeno, o futebol e as isenções: porquê tanto aparato?
Se o presidente do Benfica pediu um favor a Centeno, pode haver um reforço de prova de "vantagem indevida", embora a conexão com a ida ao jogo não seja necessária.
É tolice, piada de fraco gosto num país livre, o do Mourinho e do Ronaldo, o do futebol que domina os noticiários: o ministro das Finanças, Mário Centeno, pediu dois bilhetes para um jogo de futebol na bancada presidencial do Benfica, alegadamente por razões de segurança, e logo a seguir perguntamos se o ministro cometeu um crime.
A reação socialmente adequada é a de que o ministro é "cool", competente e "cool". Um patriota (dizem que Benfica é Portugal?) europeu (também a chanceler Merkel se faz filmar nos estádios de futebol em bancada presidencial).
Mas eis uma norma no código penal que criminaliza o recebimento indevido de vantagem (RIV), e que vai gerar muitas dúvidas num país em que a fronteira entre a esfera profissional e social, entre a lei e as palmadinhas nas costas, ainda é confusa.
O crime de RIV foi introduzido em 2010 e incluído no pacote anticorrupção. Tem por fonte o código penal alemão e a novidade reside na dissociação entre a vantagem que o funcionário (leia-se, Centeno) recebe e um ato de serviço do mesmo funcionário (leia-se, favor do ministro, enquanto tal, ao presidente do Benfica).
Não é preciso que Centeno preste um favor ao Benfica para haver crime, basta que tenha recebido uma vantagem a que não tem direito. Mas qualquer vantagem, não importa o montante ou a situação? Não. A lei exceciona "as condutas socialmente adequadas e conformes aos usos e costumes". Os magistrados detestam normas vagas deste tipo, e o pior é que muitas vezes oscilam entre o tudo ou nada (a razão é simples: dá menos trabalho a interpretar).
A resposta certa no caso Centeno é que assistir ao futebol na bancada presidencial, isto é, ocupando lugares não vendáveis, é socialmente adequado: os excessos dos adeptos num estádio podem colocar em risco a segurança de um ministro, e Portugal não é a Suécia, onde os ministros andam de metro e de bicicleta.
As buscas no Ministério das Finanças parecem então excessos de zelo do Ministério Público (é o vamos pelo tudo). Em teoria não o são: diz-se que Centeno terá recebido um pedido do presidente do Benfica, para acelerar ou conseguir a isenção de IMI para um prédio que o filho recuperou e queria vender. Se o presidente do Benfica pediu um favor a Centeno, pode haver um reforço de prova de "vantagem indevida", embora a conexão com a ida ao jogo não seja necessária.
Será que Centeno interveio? Primeiro assombro: a isenção de IMI no caso de prédios a reabilitar ou reabilitados e prevista no estatuto dos benefícios fiscais é da competência municipal. A isenção pressupõe uma licença de construção, e a emissão de certificados urbanísticos e energéticos.
Tudo certo, mas a isenção tem de ser averbada pelos serviços centrais. É o momento kafkiano: se está tudo aprovado, por que razão o funcionário não averba (está de baixa, foi tomar café, bloqueou o acesso ao computador)? Terá existido aqui um empurrão do ministro? Mesmo quando a lei prevê prazos para o reconhecimento da isenção, não é certo que o ato de averbamento os cumpra ou seja célere.
A máquina está melhor, mas emperra, os funcionários fazem o que podem, os ministros chegam e partem. Os empurrões existem e são indesejáveis, os governantes devem afastar-se disso, criam desigualdades.
Mas voltemos ao RIV. Não pode ser entendido como favor o averbamento a que um cidadão tem direito. É o contrário: o incumprimento dos serviços deveria gerar responsabilidade do Estado pelos prejuízos que nos causam e à economia. Sendo socialmente adequado um governante assistir a um jogo de futebol resguardado da multidão, e exigível o averbamento célere de uma isenção reconhecida, não há base para acionar o RIV.
A dificuldade na aplicação do RIV não justifica um espalhafato de buscas a um governante, provavelmente inconsequentes do ponto de vista criminal, e pondo em perigo toda a imagem do país. O Ministério Público tomou conhecimento prévio do processo de isenção? Não podia ter evitado tal aparato?
Professora da Faculdade de Direito de Lisboa
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