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Ampliar a Cooperação Portuguesa, envolvendo as empresas e as ONGD

A desproporção entre os montantes de projectos europeus geridos pelo Camões e os montantes de projectos com fundos próprios do Estado português pode vir a suscitar interrogações, quer em meios da Comissão Europeia ou mesmo de alguns Estados-membros.

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Bill Gates na sua entrevista ao jornal Le Monde (edição de 17-18 de Setembro de 2017) lembrou que os orçamentos da Ajuda ao Desenvolvimento totalizaram em 2016 cerca de 140 mil milhões de USD, sendo 30 mil milhões dos Estados Unidos da América, e tendo, por exemplo, a Alemanha e o Reino Unido despendido cada um 16 mil milhões de USD. A sua Fundação contribuiu com 3 mil milhões de USD.

 

Além disso, o orçamento do 11.º Fundo Europeu para o Desenvolvimento da União Europeia tem para o período 2014-2020 disponíveis cerca de 31 mil milhões de euros.

 

Parte destes 31 mil milhões de euros são despendidos ao abrigo da cooperação delegada, uma modalidade política da cooperação da União Europeia que permite à Comissão delegar a execução de parte dos seus programas e projectos aos Estados-membros.

 

Ao abrigo das prioridades europeias no domínio da cooperação, a Comissão pode, por exemplo, delegar a execução de parte dos seus programas e projectos nos Estados-membros, agências de Cooperação, ONGD (Organizações não governamentais para o Desenvolvimento) e empresas europeias.

 

O montante delegado a Portugal pela Comissão é actualmente de cerca de 42 milhões de euros, que compara com um orçamento total de actividades de cooperação do Camões I.P., a Agência Pública de Cooperação Portuguesa, de apenas 17 milhões, dos quais cerca de 4 milhões foram utilizados como co-financiamento para obter a execução dos referidos 42 milhões referentes a projectos da Comissão.

 

A desproporção entre os montantes de projectos europeus geridos pelo Camões e os montantes de projectos com fundos próprios do Estado português pode vir a suscitar interrogações, quer em meios da Comissão Europeia ou mesmo de alguns Estados-membros.

 

Por outro lado, o acesso de Portugal aos "trust funds" e aos instrumentos de "blending" disponíveis na Comissão são praticamente nulos, apenas com a excepção de um projecto de desenvolvimento rural na Colômbia no montante de cerca de 4 milhões de euros, assinado no passado dia 11 de Dezembro.

 

Acresce que esta dependência do Camões de Bruxelas para a execução de programas e projectos da Comissão impede uma afirmação da Cooperação oficial portuguesa, limitando-lhes a opção no financiamento de outros programas ou projectos provavelmente mais urgentes, como nas áreas da educação, da formação, da qualificação e da saúde, sectores que devem ser privilegiados para a satisfação das necessidades dos países beneficiários e das suas populações, afinal a razão de ser da Cooperação para o desenvolvimento.

 

Os referidos programas e projectos da Comissão são definidos e escolhidos em Bruxelas, sem que se conheçam os critérios que nortearam o Camões na escolha das intervenções que se propõe executar em nome da Comissão. Trata-se assim de um sistema opaco para os contribuintes portugueses, as nossas empresas e as nossas ONGD.

 

Esta circunstância é agravada pela inexistência de uma abordagem que claramente defina o relacionamento do Estado com estes actores da sociedade civil, com modalidades de diálogo adaptadas aos objectivos concretos que se pretendem alcançar de acordo com as melhores práticas internacionais.

 

Como disse à revista Jeune Afrique (n.º 2969 de 3 a 9 de Dezembro de 2017) o brilhante economista-chefe da Agência Francesa para o Desenvolvimento (AFD) Gael Giraud: "A AFD quer ser mais parceira. (Por exemplo) na Aliança para o Sahel trabalhamos com a KfW (Alemanha), com o Banco Mundial, com o Banco Africano para o Desenvolvimento, com a União Europeia. É preciso que consigamos agregar as diferentes fontes de ajudas públicas ao desenvolvimento. O outro aspecto é de trabalhar sobretudo com todas as partes envolvidas nos projectos, incluindo as populações das aldeias, reunir toda a gente à volta da mesa. A nossa ambição é que metade dos nossos recursos não esteja ligada aos Estados, mas vá para as colectividades locais, para o privado, para as ONG."

 

Finalmente, e talvez o ponto mais importante que justifica a imperativa necessidade de reformar completamente a Cooperação oficial portuguesa, trata-se de a desligar da sua desastrada fusão com as actividades da língua e cultura portuguesas no mundo.

 

Essa fusão foi um disparate que deu ao mundo, incluindo à CPLP e à UE, a imagem de que a defesa e promoção da língua e cultura portuguesas era uma actividade menor da política externa de Portugal e ainda de que a Cooperação oficial portuguesa era marginal no contexto dessa política. Além disso, custou muito caro aos contribuintes a perda, porventura para sempre, de dezenas de quadros altamente qualificados em matérias internacionais muito específicas e técnicas.

 

É assim urgente iniciar-se o processo da reforma da nossa Cooperação oficial, começando por separá-la numa entidade diferente do Camões, o qual deve permanecer apenas com as importantes funções e actividades relacionadas com a defesa e promoção da língua e da cultura portuguesas, transversal a toda a nossa presença no mundo.

 

Deverão ainda seguir-se, naturalmente adaptados à nossa realidade, os exemplos de recentes reformas como a verificada na Alemanha com a refundação da GTZ (2011) e em França com a criação da Expertise France (2014), não esquecendo a última iniciativa de Espanha com a criação da FIIAPP/Cooperación Española. Estas três instituições têm aliás entre elas uma parceria privilegiada, dando assim mais um exemplo de abertura e flexibilidade em trabalhar a rede para atingir objectivos comuns a favor das populações e entidades dos países destinatários no âmbito dos objectivos de desenvolvimento duradouro da Agenda 2030.

 

Nessa nova e moderna organização da Cooperação pública para o desenvolvimento de vários países europeus, quer a nível nacional quer multilateral, de que o DAC da OCDE é um exemplo, a necessidade da abertura do Estado às empresas e às ONGD é hoje em dia unânime.

 

E todos esses países assumem essa nova visão como um importante factor das suas políticas externas, não hesitando em afirmar expressamente, como o faz a Expertise France, que "a Agência mobiliza também o conhecimento e o saber-fazer do sector privado. Quando se apresentam oportunidades, a Expertise France associa tanto quanto possível os actores privados no quadro das suas respostas aos pedidos de ofertas".

 

Este reconhecimento da importância dos "actores privados", ou seja, das empresas e das ONGD, na criação de riqueza e de empregos, no desenvolvimento sustentável e no crescimento inclusivo, conduz-nos a outros dois pontos que as modernas e inovadoras agências tanto valorizam: a necessidade de criar um meio ambiente favorável às actividades empresariais "no sentido do conjunto dos factores políticos, jurídicos, económicos, sociais, etc., que determinam as escolhas dos investidores e, paralelamente, a integração económica regional permitindo criar mercados suficientemente atractivos para o investimento e o comércio. Estes factores críticos geram um crescimento duradouro, criam empregos e asseguram a transição para um crescimento inclusivo" dos países em desenvolvimento.

 

Não se trata, obviamente, de Portugal ter uma agência com a dimensão e os recursos da AFD ou da GTZ alemã, esta com os seus 2.800 projectos em 142 países, os seus mais de 60 escritórios em países parceiros, os seus 1.600 funcionários alemães ou os 8.590 funcionários contratados localmente.

 

Trata-se sim de replicar em Portugal, e à nossa medida, a mesma visão, os mesmos princípios e as mesmas boas práticas de trabalhar em rede, de forma transparente, aberta, moderna, inteligente e eficaz a favor do desenvolvimento e crescimento inclusivo das economias e da melhoria do bem-estar das pessoas dos países em desenvolvimento.

 

Como concluiu Bill Gates na sua acima mencionada entrevista ao Le Monde, a ajuda ao desenvolvimento também pressupõe educar, formar e qualificar quadros que possam prover as necessidades das empresas na contratação de mão-de-obra local indispensável aos seus investimentos. E, além disso, em estabilizar esses países no caminho do desenvolvimento, do crescimento e, finalmente, da auto-suficiência.

 

Seria frustrante e injusto para o nosso país e as gerações futuras de portugueses e africanos, em especial os da CPLP, que Portugal não participasse nesse incontornável desafio. Afinal, o tema da recente Cimeira União Europeia-União Africana foi dedicado às juventudes de ambos os continentes, ou seja, ao futuro das relações Europa-África, o nosso vizinho continente, que segundo as estimativas das Nações Unidas terá cerca de 3.000 milhões de habitantes em 2050, esmagadoramente jovens, entre os quais existe muito e variado talento.

 

Nota: o autor escreve a título pessoal

 

Presidente do Conselho Estratégico para a Cooperação, Desenvolvimento e Lusofonia Económica da CIP

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