Opinião
A sorte não se deixa ao acaso
Quando um amigo meu de Tianjin me pediu que o ajudasse a encontrar um apartamento em Lisboa percebi que não ia ser tarefa fácil. Ainda na China começámos por descarregar no seu iPad o mapa da cidade.
A ideia era termos uma percepção da topografia que, contrariamente às cidades chinesas como eu já tinha avisado, apresenta o problema de múltiplas elevações por onde as casas se estendem mergulhando depois em outros tantos vales. Dois pares de olhos sobre o mapa e foi quando ele descobriu algo que eu nunca tinha visto: Lisboa, recortada sob o azul vidrado do céu, representa a boca de um leão onde o Tejo é nada mais do que a garganta. A descoberta pareceu iluminar-lhe a face numa sugestão de esperança: Lisboa é um local pleno de abundância. Imagine-se a viver na boca de um leão, face ao oceano e nunca terá de se preocupar com falta de comida.
Começámos depois a examinar o mapa com muito mais pormenor e descobrimos que existem dois eixos centrais na cidade a partir da Praça do Comércio, um é a linha azul do metro e outro a linha verde. As duas linhas foram cuidadosamente escrutinadas e foi então que, na zona do Jardim da Alameda, o meu amigo se apercebeu da existência de uma área plana, uma raridade por entre as sete colinas de Lisboa. Seguindo o princípio chinês de que se deve "procurar uma área plana para viver", o local tinha sido finalmente encontrado; o resto só poderia ser feito uma vez em Lisboa. O que se seguiu foram três semanas de intensas caminhadas por entre as ruas da zona da Alameda à procura de informação vital. Se o apartamento tem de ficar numa zona plana, tem também de estar na proximidade de uma pequena montanha que não o abafe e lhe dê antes uma sensação de proteção e segurança. Outra condição é a existência de uma fonte, símbolo de boa sorte e riqueza. Nesta infeliz época de crise não foi difícil encontrar um, mas vários apartamentos reunindo a especificidade destas condições. Contudo os princípios do "feng shui" - uma ciência e uma arte desenvolvidas na China há mais de 3.000 anos e que estuda o equilíbrio entre as energias de um dado espaço - ainda que para um iniciado como o meu amigo, exigem muito mais do que isso.
Seguiu-se pois uma análise ainda mais micro de cada um dos apartamentos indiciados como, por exemplo, a direção do trânsito. Se algo no apartamento, em particular porta ou janela, está virado diretamente para o trânsito, o local é bastante arriscado para se viver. As luzes dos carros "ferem" as pessoas como setas e é muito provável que qualquer membro da família venha a ter problemas de saúde. Depois disto é necessário examinar o interior do apartamento e aí o mais importante é o sentimento, a química que se experimenta quando se entra numa casa pela primeira vez. A disposição das divisões é também fundamental, em especial a localização da cozinha, das casas de banho e da sala de estar. O meu amigo explicou-me que, para um chinês, o maior problema na escolha de casa em Portugal é precisamente a localização da casa de banho. Depois de várias semanas de visitas e pesquisa concluiu que os portugueses colocam sempre a casa de banho em frente da porta de entrada ou no centro do apartamento enquanto, para os chineses, o centro é o coração da casa. Este é um problema de que também sofre o apartamento que finalmente escolheu, mas uma vez consultado o mestre de "feng shui" este assegurou-lhe que os donos da casa têm o "poder" de manter as "forças negativas" sob controlo. Em resumo, uma família feliz produz energia positiva suficiente para ultrapassar qualquer força negativa. Em todo o caso, e porque a sorte não se deixa ao acaso, o meu amigo e a família nunca utilizam a casa de banho no centro do apartamento, mas sim uma outra que felizmente têm nas traseiras.
Esta história responde a duas perguntas que muito frequentemente me fazem em Portugal: porque é que a comunidade chinesa se aglomera na zona da Alameda? e porque é que não é assim tão fácil vender uma casa a um cidadão chinês?
Professora na ISCTE Business School e no INDEG-IUL ISCTE Executive Education
Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.