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09 de Agosto de 2013 às 00:01

A idade da construção

A Volta a Portugal em Bicicleta traz-me, sempre, reminiscências: fui um repórter da Volta, em 1958, ano de todos os alvoroços. Eu conto.

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A Volta a Portugal em Bicicleta traz-me, sempre, reminiscências: fui um repórter da Volta, em 1958, ano de todos os alvoroços. Eu conto. Trabalhava n' "O Século", olho vivo e pé ligeiro, tira-picos de uma Redacção lendária, dirigida por um jornalista mítico, Acúrsio Pereira. O jornal era propriedade da família Pereira da Rosa (da qual guardo as mais gratas recordações), mas "O Século" era o Acúrsio. O resto é conversa. Ali havia o hábito de rodar os tira-picos pelas diversas secções do matutino, durante alguns meses, até os tira-picos se familiarizarem com as técnicas e os segredos da feitura de um grande jornal. Assim foi comigo. Passei pelo crime, pelo hospital, pelo Torel e pelo tribunal, pelo descarrilamento e pelo naufrágio. A dor humana em toda a sua trágica dimensão.


Houve um fogo na Mãe d'Água, à Praça da Alegria, o chamado "incêndio das fitas", num armazém pertencente ao empresário Vicente Alcântara, onde se arrecadavam milhares de películas cinematográficas, e alguns clássicos importantes. Logo o Acúrsio me enviou para o local, e como eu não sabia como se tomava conta do acontecimento, fez-me acompanhar do João Ribeiro, grande repórter-fotográfico, e querido amigo, ainda vivo, que me ensinou a estrutura do que eu tinha de escrever. Era assim mas assim deixou de ser. Lamento. Os repórteres fazem-se na dura aprendizagem da notícia, que nos ensina o respeito pelos outros e a aproximarmo-nos da grandeza e da miséria humanas com humildade e devoção. E cumplicidade. Quando nos afastamos do humano, algo de vital se perdeu em nós.


Nessa escala de valores e preceitos, em 1958 fui enviado-especial a Bruxelas, para relatar os factos da Feira Internacional. Entre outros jornalistas, um, Artur Portela, do "Diário de Lisboa", outra lenda da Imprensa, com quem estabeleci grande amizade, escorada numa admiração sem reservas. Era um homem afável e extremamente afectuoso, com um talento único e uma modéstia incrível.


Fiz o que tinha a fazer e, na madrugada do regresso a Lisboa, telefonei ao Acúrsio, como era hábito de cortesia. "Já chegaste? Então prepara-te, porque depois amanhã vais na Volta a Portugal." Tinha 24 anos e tudo me era maravilhoso, e nada me era impeditivo.


A Volta é um acontecimento extraordinário. Ficou-me para a vida. As vedetas eram Alves Barbosa, Antonino Baptista, Pedro Polainas, alguns mais. A caravana artística apresentava uma cantora famosa: Maria José Valério. Os jornalistas que lá iam constituíam a nata da Imprensa: Tavares da Silva, Artur Agostinho, Fernando Soromenho, aos quais me encostei, a fim de ver como faziam para eu os copiar. Naquele ano, a Volta era organizada por um jornal, "Diário Ilustrado", fundado, entre outros, por Miguel Urbano Rodrigues, Carlos Eurico da Costa, e pelo meu pai, chefe da tipografia.


Logo-assim saída de Lisboa, em Alpiarça, dois ciclistas espanhóis, Raul Motos e Joaquin Pólo, tombaram na estrada, atingidos pela força do sol e pelas anfetaminas que tomavam. Só mais tarde percebi que as assim chamadas "bombas", ingeridas à frente de todos, sem peias nem rebuço, eram estimulantes fortíssimos. Joaquin Pólo ziguezageou em cima da bicicleta, não aguentou e tombou, com a cabeça estoirada no lancil. Raul Motos caiu junto do carro de "O Século", e eu saltei para o ajudar. Os olhos estavam vazios e sem entendimento, pareceu-me que sorrira, e morreu. A caravana não dispunha de médico, só depois dos dois trágicos acontecimentos lá apareceu um.


Escrevi umas prosas indignadas, que obtiveram grande repercussão. E continuei a redigir reportagens no mesmo tom. Até que, já no Alto Alentejo, me apareceu um representante do jornal patrocinador, a advertir-me de que, se eu prosseguisse naquela "campanha difamatória" (foi assim que ele se exprimiu), o lugar do meu pai corria perigo. Corri com o tipo (cujo nome omito, e até porque já morreu), com furiosa indignação, e telefonei ao velho Chico Bastos, que me disse: "É o teu trabalho; continua com ele, como entenderes que deve ser feito." Por outro lado, o Acúrsio, também ao telefone, me contou que recebera pressão dos proprietários do "Diário Ilustrado" (donos de uma importante empresa, Abel Pereira da Fonseca), para eu "mudar de tom." O Acúrsio repelira-os gritando, como lhe era comum: "N' 'O Século' só mandam os patrões!"


Dois carros do som antecediam a caravana. "Vêm aí os ciclistas!" E a festa da estrada começava, emocionante e comovente. Gente vinda sabe-se lá de onde enchia as estradas, hora de festa para sonhar. Apontavam os automóveis: "Olhó Século!" e eu acenava-lhes, cheio de vaidade e de orgulho por pertencer àquela seita.


A Volta a Portugal era a fuga à enxada, às jornas de sol a sol, ao trabalho violentíssimo dos campos, e os ciclistas os heróis das populações, que, durante vinte dias, eram livres e irrepetíveis nessa liberdade. E era, também, a manifestação de grandeza desses homens, Artur Agostinho, Tavares da Silva, dependurado num charuto, e com o sorriso mais largo e amável que conheci.


Foi, de facto, o ano de todos os alvoroços. Também estive na campanha Delgado, apertei a mão ao general, falei com Manuel Mendes, conversei com Cassiano Branco, o extraordinário arquitecto, igualmente na batalha pela liberdade. Estive lá. E em cada Volta a Portugal regressam todas essas reminiscências, assim como os rostos inesquecíveis desses homens que me ajudaram na idade da construção. Talvez mais vezes regressarei a estes episódios, porque nada deles poderá ou deverá ser esquecido.


b.bastos@netcabo.pt

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