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A perda de adequação dos sistemas de pensões como problema oculto de sustentabilidade

Nos últimos anos, diversos países desenvolvidos, para enfrentar esses problemas de sustentabilidade, aprovaram um conjunto de reformas paramétricas com destaque para os chamados mecanismos automáticos de adaptação das pensões à evolução das contingências demográficas e económicas.

N os anos noventa do século passado, sobretudo com a publicação do controverso Relatório do Banco Mundial (1994), “Averting the Old Age Crisis”, o tema “quente” da agenda académica e política, um pouco por todo o mundo, passou a ser o da (in)sustentabilidade da Segurança Social – especialmente dos sistemas de pensões públicos de repartição (“pay-as-you-go”) – e isso seria em boa medida fruto do envelhecimento demográfico, já então previsto.

Nos primeiros anos do novo século, o tema da sustentabilidade da Segurança Social manteve alguma atenção, mas que se atenuou a seguir e isto sobretudo por quatro razões. Em primeiro lugar, uma razão técnica, que resulta do facto de a ideia em si mesma de sustentabilidade dos planos de pensões estar conceptualmente pensada para regimes de capitalização (onde em cada momento é possível confrontar “ativos” com “passivos” assumidos, para apurar o estado de sustentabilidade do plano em questão), parecendo menos interessante no contexto de regimes de repartição (mesmo que se baseiem em contribuições sociais bilaterais) que pressupõem não tanto uma gestão financeira de longo prazo, antes uma gestão orçamental de curto prazo a partir do fluxo corrente, gerado em cada momento, de receita e despesa. Em segundo lugar, porque mesmo os países baseados em financiamento por contribuições sociais começaram a diversificar as suas fontes de financiamento, afetando cada vez mais impostos ao financiamento de prestações e assim cimentando essa lógica de gestão de curto prazo. Desta forma, o financiamento da Segurança Social passa a ser encarado como um financiamento em tudo idêntico ao de outras despesas (correntes) do Estado, dependente não de um esforço contributivo real ou virtualmente acumulado, mas antes e tão-só das possibilidades financeiras desse mesmo Estado em cada momento existentes. Em terceiro lugar, por se admitir que o Estado possa compensar a Segurança Social, caso esta entre numa situação deficitária, podendo fazê-lo em qualquer circunstância, pelo tempo que for, e até para fazer face a défices estruturais – desta forma, favorecendo a ideia ingénua, de que”a Segurança Social não pode falir”. A quarta e última razão tem que ver com medidas de política entretanto adotadas, merecedoras de especial atenção.

Com efeito, nos últimos anos, diversos países desenvolvidos, para enfrentar esses problemas de sustentabilidade, aprovaram um conjunto de reformas paramétricas (reformas não estruturais, antes incidentes sobre parâmetros específicos dos sistemas de pensões), com destaque para os chamados mecanismos automáticos de adaptação das pensões à evolução das contingências demográficas e económicas. A maior parte dessas reformas paramétricas (e.g. alteração das regras de cálculo das pensões, fatores de sustentabilidade, aumento da idade da reforma e penalizações acrescidas das pensões antecipadas) teve por efeito a redução da taxa de substituição dessas pensões (o valor da primeira pensão em relação ao último salário) e do rácio de benefício (o valor da pensão média em relação ao salário médio). De facto, se olharmos para o recente “Ageing Report” da Comissão Europeia (2021), verificamos que a diminuição do crescimento da despesa com pensões projetada para as próximas décadas, no caso português (-3.2 pp entre 2019 e 2070), fica a dever-se à redução do rácio de benefício (-7,8 pp entre 2019 e 2070) e da taxa de cobertura (-2,5 pp) que assim compensam o impacto do aumento do rácio de dependência, o único fator que contribui para o crescimento dessa despesa (+8,8 pp). Projeta-se por sua vez uma redução expressiva da taxa de substituição das pensões, de 74% (2019) para 41,4% (2070). Tal significa então que se é verdade que a contenção da despesa tende a reforçar a sustentabilidade do sistema, não é menos que isso é conseguido à custa de uma deterioração do nível de adequação das pensões, ou seja, do grau de suficiência da proteção por elas assegurado. Parece, portanto, que o problema da (in)sustentabilidade da Segurança Social se transmutará definitivamente num problema de (perda de) adequação.

De resto, o envelhecimento demográfico agudizará essa perda de adequação através da própria quebra de produtividade que é a “fonte” a partir da qual se alimentam os sistemas de segurança social. Acresce um pressuposto – que não parece inteiramente assumido na projeção subjacente ao “Ageing Report” – ligado às mutações do mercado de trabalho resultantes da Revolução Industrial em curso (da inteligência artificial) e que a pandemia desde já acelerou. Trata-se de saber se sistemas contributivos da Segurança Social estarão preparados para acomodar a crescente atipicidade laboral e hiatos contributivos no quadro dessa nova realidade tecnológica. A pressão daqui adveniente para modelos de base inteiramente fiscal (e.g. o Rendimento Básico Incondicional), com a vantagem de libertar o trabalho da obtenção de rendimentos e estes da realização do trabalho, não resolverá por si só, antes pelo contrário, problemas futuros de adequação. De notar por fim que a perda de adequação, verificada no quadro de regimes contributivos e, por maioria de razão, nos regimes de base fiscal, tenderá a favorecer, na medida do possível, a procura por complementos de pensões (o regresso à lógica seguradora “pura e dura” ou ao domínio da poupança), dentro ou fora do sistema público de Segurança Social.

 

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