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19 de Outubro de 2020 às 11:30

FMI “dixit”

A crise afeta, ao contrário da Grande Crise Financeira que atingiu mais a população masculina, desproporcionalmente as mulheres, os trabalhadores informais e com baixas qualificações.

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Nas tradicionais reuniões de outono do FMI e do Banco Mundial, operadores de mercado, analistas financeiros, e autoridades buscam obter a visão dominante da evolução de economia global para o ano seguinte. Este ano, a proposta oferecida por estes organismos foi uma recuperação incerta, desigual e longa. A imprevisibilidade da crise sanitária domina todas as projeções macroeconómicas. As perspetivas melhoraram, mas a recuperação, em condições desejáveis, não está garantida, recomendando especial cautela relativamente ao impacto da crise em termos de desigualdade de rendimento e género.

Segundo o FMI, o caminho para o crescimento requer políticas nacionais hábeis, capazes de assegurar o necessário equilíbrio entre promoção da retoma de atividade no curto prazo e os desafios de médio prazo ou as cicatrizes provocadas pela crise. A escolha das políticas adequadas é particularmente exigente, requerendo engenho; tanto mais que ocorre num momento em que a dívida pública global atingirá 100% do PIB mundial. Neste aspeto, o FMI oferece uma palavra de conforto (aos países que podem aceder a financiamento em condições normais). Na medida em que as taxas de juro se manterão reduzidas e inferiores à taxa de crescimento do produto, o serviço da dívida permanece sustentável e a dívida pública estabilizará em meados da década, sem necessidade de agravamento da carga fiscal ou cortes de despesa. Aconselha-se ainda o aumento do investimento público, designadamente em projetos de proximidade como obras públicas de manutenção de infraestruturas existentes, uma vez que no contexto atual, designadamente em economias em desenvolvimento, a margem para execução de grandes projetos públicos inexiste. O FMI preocupa-se ainda com a potencial menor eficácia dos multiplicadores orçamentais devido à elevada dívida pública, imensa incerteza (que promove poupanças precaucionárias, condicionando negativamente o consumo) e balanços fragilizados no setor privado (ganhos da retoma canalizados para reembolso de dívida adiando investimento).

Ao longo das várias publicações emblemáticas do FMI perpassa a preocupação aguda com as consequências da crise relativamente à desigualdade, deixando cicatrizes. A incidência de pobreza extrema subirá pela primeira vez em duas décadas e a desigualdade agravar-se-á. A crise afeta, ao contrário da Grande Crise Financeira que atingiu mais a população masculina, desproporcionalmente as mulheres, os trabalhadores informais e com baixas qualificações (os que predominam nas indústrias mais dependentes de contacto ou presença física). Mundialmente, 42% das trabalhadoras informais desenvolvem a sua atividade em setores severamente afetados pela presente crise que compara com 32% dos trabalhadores informais homens.

A presidente do FMI preconiza que a presente crise deve funcionar como catalisador para esforços de redução de desigualdades, no sentido de forjar um novo contrato social, contemplando a dimensão intertemporal (nesta perspetiva, a discussão relativa a dívida pública e impostos futuros conta) e o encolhimento do fosso entre ganhadores e perdedores. Acresce que as soluções preconizadas podem não envolver necessariamente despesa pública. O FMI e o Banco Mundial têm desenvolvido vasto trabalho dedicado à desigualdade, concluindo que, em muitos casos, soluções implicam sobretudo mudanças culturais, designadamente em termos de robustecimento das instituições no sentido de maior transparência, controlo e responsabilização. Por exemplo, o empreendedorismo feminino é reconhecidamente um motor de desenvolvimento em economias de baixos rendimentos. Para ser bem-sucedido, alguns requisitos têm de ser assegurados à partida: igualdade no acesso à escola (na reabertura das economias pós-covid, mais raparigas não regressaram que rapazes – confrontados com o facto de apenas um descendente poder frequentar a escola, os pais privilegiam os filhos), igualdade no acesso à propriedade (em várias sociedades, as mulheres não são autorizadas a deter qualquer título de propriedade – habitação, conta bancária, terreno), igualdade no acesso à mobilidade (como a obtenção de passaporte ou a possibilidade de viajar sem autorização de terceiros – marido ou pai, se solteira). A circunstância da crise, como o FMI sugere, interpela-nos na busca de soluções de crescimento inclusivas, sustentáveis e inovadoras, as quais requerem sobretudo mudança de mentalidade e/ou de instituições.

 

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