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Carlos Almeida Andrade - Economista 05 de Junho de 2015 às 00:01

A união monetária - o exemplo americano

Existe um ditado, a que se recorre em momentos difíceis, que diz que "no fim, tudo ficará bem; e se as coisas não estão bem, então isto ainda não é o fim". Este optimismo parece estar a ser testado, ao extremo, no caso das negociações da Grécia com os seus credores.

Em toda a crise da dívida soberana, desde 2010, os líderes da Zona Euro têm sido fortemente criticados pela falta de decisões claras que possibilitem uma resolução rápida dos problemas. Esta crítica é, muitas vezes, associada às ideias de falta de visão, de coragem, de coordenação e de solidariedade. Ao mesmo tempo, o próprio projecto da Zona Euro é posto em causa, sobretudo com o argumento de que as diferenças entre os Estados-membros (económicas, culturais, etc.) são demasiado profundas. No seu conjunto, estas críticas sugerem, implícita ou explicitamente, a inevitabilidade de um falhanço do projecto da moeda única. Será mesmo assim? O exemplo da união monetária dos Estados Unidos tem sido, por vezes, utilizado como ponto de comparação com a Zona Euro. São diversas as diferenças entre as circunstâncias históricas, culturais e económicas das duas uniões, pelo que qualquer comparação directa deve ser feita com todo o cuidado. Ainda assim, algumas lições da experiência americana podem ser úteis.

 

É errado pensar que a construção da união monetária dos EUA foi um processo natural, simples e linear, entre Estados e realidades económicas e culturais homogéneas. Logo no início, a assunção e reestruturação de dívidas dos Estados pelo Governo Federal (em 1789), da responsabilidade do Secretário do Tesouro Alexander Hamilton, hoje muito elogiada, gerou uma oposição feroz no Congresso. Apesar daquela medida ter avançado, sucederam-se, na primeira metade do século XIX, crises financeiras e bancarrotas de diversos Estados, acompanhadas por pedidos de que o Governo Federal continuasse a assumir as dívidas estaduais. Lord Ashburton, um negociador britânico ao serviço do banco Barings, descrevia, nesta altura, os EUA como "uma anarquia ingovernável". O Congresso acabou por estabelecer, em meados do século XIX, uma regra de "no bailout" aos Estados. Mais tarde, divergências profundas ao nível das estruturas económicas, das opções de política e da própria identidade cultural, levaram a uma situação extrema de guerra civil entre os estados do Sul e do Norte (sendo a questão da escravatura uma expressão destas divergências). O fim da guerra não acabou com as ameaças à união monetária. O peso da dívida associada ao esforço de reconstrução dos estados do Sul continuou a alimentar as divisões com o Norte. No final do século XIX, choques económicos assimétricos (por exemplo, associados à queda de preços agrícolas) acentuaram as dificuldades das economias do Sul. Crises financeiras graves resultaram, nos anos 1890, em fugas de depósitos do Sul para o Norte. Tal como hoje na Zona Euro, o debate sobre a política monetária foi feito em termos regionais, com os estados do Sul a exigirem políticas monetárias expansionistas. Só como resposta às consequências da Grande Depressão, nos anos 30 do século XX, surgiram programas de transferências orçamentais financiadas pelo Orçamento Federal (e.g. subsídio de desemprego, prestações sociais, subsídios aos preços agrícolas), que minimizaram os efeitos dos choques assimétricos e finalizaram o processo de construção da união monetária. É apenas nesta altura que é criado um mecanismo Federal de seguro de depósitos, e que é aprovada legislação Federal sobre o salário mínimo e outras condições laborais, que estimulam a mobilidade entre estados. Foi também apenas depois da I Guerra Mundial que se consolidou, nos EUA, um verdadeiro espírito de nação, menos expressivo até aí.

 

Em suma, é verdade que, neste aspecto, os EUA têm vantagens sobre a Zona Euro (e.g. uma nação, uma língua, um processo construído de baixo para cima). Mas apenas se tornaram numa verdadeira união monetária nos anos 30 do século XX, num processo com quase 150 anos, ultrapassando diversos obstáculos semelhantes (e alguns piores) aos vividos pela Zona Euro: choques assimétricos, confrontos políticos regionais, erros de política, etc. num contexto de profundas divergências internas económicas e culturais. À luz desta experiência histórica, os avanços na união monetária do euro não parecem tão negativos. Na verdade, muito foi feito. Mas, verdade também, muito há ainda a fazer, sobretudo na minimização dos efeitos dos choques assimétricos (por exemplo, com uma maior integração e solidariedade orçamentais, incluindo, por exemplo, o financiamento comum - pelo menos parcial - de prestações sociais ligadas ao desemprego). Numa visão optimista, chegaremos lá, com tempo, e a actual crise grega é apenas uma das dificuldades do percurso. Mas os riscos são extremamente elevados e o momento é crítico. Se queremos que o projecto prossiga, manter a união monetária intacta deveria ser uma prioridade.

 

Economista Chefe - Novo Banco

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