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Irlanda: competitividade fiscal e roubo não são a mesma coisa

A decisão histórica da Comissão Europeia sobre a Apple não é sobre o caso típico em que um país periférico oferece impostos mais baixos para atrair investimento. A Irlanda tem uma taxa de 12,5% de IRC - a mais baixa da Zona Euro -, mas não é isso que a Apple paga.

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Bruxelas concluiu que o tratamento oferecido à multinacional resultou numa taxa efectiva de imposto de 1% em 2003 a 0.005% em 2014. Porquê? Porque paralelamente à actividade real na Irlanda - a que emprega mais de seis mil pessoas, com bons salários e qualificações - a Apple tem outra, fictícia.

 

É nessa operação fictícia que a empresa regista as vendas originadas no mercado único europeu, incluindo Portugal. A empresa não é residente nos EUA e os seus lucros não podem ser taxados aí. Mas também não é residente na Irlanda, onde está registada, porque não corresponde às especificidades da lei irlandesa. É como se não existisse. Em linguagem técnica este e outros esquemas têm vários nomes sofisticados. Na linguagem que todos percebemos chamam-se roubo. A Apple tem estacionados fora dos EUA cerca de 180 mil milhões de dólares em dinheiro, quase o PIB português.

 

É racional que um país periférico recorra à competitividade fiscal para atrair investimento para a economia real - e é racional que uma empresa tente minimizar a sua factura fiscal. Mas não é disso que estamos a falar quando falamos no caso Apple (ou noutros deste tipo). A empresa aproveita buracos legais para praticamente não pagar impostos (este desenho de Bruxelas explica: http://ec.europa.eu/competition/publications/infographics/2016_07_en.pdf ). Já a Irlanda não se limita a usar o dinheiro dos seus contribuintes - a Irlanda usa o dinheiro de todos os contribuintes europeus, incluindo os portugueses, para dar um enorme subsídio público aos accionistas da Apple. Em troca recebe os seus milhares de empregos e milhões em investimento.

 

A Comissão não multou a Apple porque paga poucos impostos, mas porque paga muito menos impostos do que os concorrentes - a ideia, simples e difícil de disputar, é de que se trata de uma ajuda de Estado. Ir pela concorrência é uma habilidade para evitar acusações de interferência na soberania fiscal - a decisão é contra a mal-amada política fiscal de um Estado-membro e o abuso de empresas como a Apple.

 

Segue-se agora uma longa batalha jurídica e política, de desfecho incerto. Mais certo é que este tipo de política pública abusiva passou a ter outro problema além do moral: o risco de litigância. Se quisermos ser optimistas - como na excelente análise do Financial Times sobre o tema ("Brussels levels the playing field") - podemos apontar para o ideal: que daqui saia uma reforma fiscal europeia para as multinacionais, que distinga entre investimento para a economia real e esquemas no papel para fugir aos impostos. Sendo mais realistas podemos esperar que Bruxelas vença o seu caso, levando os decisores públicos europeus a encararem a competitividade fiscal como um instrumento para desenvolver a economia real - e não para roubar muitos em benefício de muito poucos.

 

P.S. Quase toda a opinião publicada à direita sobre o caso é a desilusão de sempre quando se toca neste assunto. Por pragmatismo excessivo ou mero clubismo, a direita tem grande dificuldade em reconhecer o problema moral nestas questões, mesmo quando há argumentos económicos alinhados com a posição moral. É um erro que entrega de bandeja à esquerda a defesa elementar de justiça fiscal na economia global.


Jornalista da Revista SÁBADO

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