Opinião
A nossa divina comédia
Pedro Passos Coelho errou na previsão. O diabo não chegou em setembro, nem deverá chegar este outono.
Num país com um PIB tão anémico, endividado, envelhecido, com uma máquina pesada do Estado, é elevada a possibilidade do regresso de Mefisto, mas o líder da oposição cometeu um erro e não aprendeu nada com os mestres da profecia: nem Nostradamus, nem o Bandarra de Trancoso se comprometeram com datas precisas, evitando o risco de serem confrontados com a realidade a curto prazo.
A geringonça sobreviveu a este outono e vai sobreviver nas negociações do Orçamento do Estado. A generalidade das sondagens mantém os partidos que a suportam com clara maioria absoluta. E a vantagem é tanta que António Costa até poderia sonhar com uma aliança maioritária a dois, só com o Bloco, ou apenas com o PCP.
E nas contas públicas, os dados do défice até dão um balão de oxigénio, o que é uma vitória para o atual Governo. Costuma dizer-se que o diabo está nos detalhes, mas os pormenores não têm o impacto da imagem geral. Já há sinais claros de que o Governo vai fazer tudo para sair de 2016 com o défice controlado. Empurra com a barriga para o próximo ano os compromissos financeiros inadiáveis deste ano e congela o investimento público. Exemplo desta política é o atraso do Ministério das Finanças na disponibilização de uma verba de 4,1 milhões de euros para o Ministério da Defesa, o que compromete a abertura do novo ano letivo das academias militares.
Há um brutal aumento de impostos, mas nos combustíveis e no tabaco. Mas os impostos indiretos são mais anestesiantes, quando se paga o gasóleo caro, culpa-se o petróleo, apesar de mais de metade do preço reverter para o Fisco. E quem fuma já sabe que o vício não é barato. E o Governo ainda se dá ao luxo de fazer a pedagogia politicamente correta de proteger o ambiente com mais impostos sobre os produtos mais poluentes.
O imposto mais relevante para as pessoas é o IRS, com reflexos diretos no orçamento familiar. Este ano muita gente recuperou salário e pensões e no acerto de contas as devoluções bateram um impressionante recorde. Tudo indica que no Orçamento do Estado para 2017 a receita do "cocktail" fiscal seja mais do mesmo. Menos pressão no IRS, com abolição da sobretaxa, e mexidas nas deduções, que favorecem a maioria das famílias, compensadas por acréscimos nos tais impostos anestesiantes. É inevitável o agravamento fiscal, mas este Governo está a escolher o caminho politicamente mais hábil e com alguns truques, devolvendo rendimento nos salários e pensões, através de um alívio no IRS, o que até pode gerar a ideia de baixar a pressão. Quanto ao barulho provocado pelas palavras de Mariana Mortágua, a polémica até ajudou António Costa, que vem colocar o patamar de um milhão de euros para a tributação, excluindo as casas de habitação das famílias, o que limita o universo das pessoas atingidas e dá uma bandeira à esquerda.
Porém, Portugal vive um purgatório de baixo crescimento económico, com todas as penas que isso acarreta. Quem mais sofre é o exército de desempregados, uma taxa que persiste em valores preocupantes, sendo particularmente assustadora a taxa de desempregados de longa duração e o desemprego entre os mais jovens.
Não se vê o diabo, mas há sinais que mostram a entrada do inferno descrita por Dante na magistral "Divina Comédia". A inscrição daquela porta, "Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança", diz muito sobre os dias de hoje.
Director-adjunto do Correio da Manhã
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