Opinião
Não estraguem a democracia
Quando a vontade de participar se perde e os problemas sociais e económicos se agudizam, não valerá muito a pena tentar matar a fome, criar emprego ou dar conforto apenas com retórica ou manifestações de boa intenção.
Um estudo do ICS/ISCTE recentemente publicado revela-nos, entre tantos outros dados interessantes, que apenas 10% dos portugueses acreditam viver em plena democracia. E que 40% veem nela grandes defeitos. Estando a comemorar agora a passagem de 47 anos de instauração do regime democrático em Portugal não deixa de ser interessante refletir sobre tudo aquilo que sendo formalmente atributo da democracia constitucionalmente consagrado, ainda não está interiorizado ou não chegou a casa de cada um dos portugueses. Falamos naturalmente das condições sociais, económicas e culturais que nos caracterizam enquanto povo e de tudo aquilo que os nossos representantes têm feito, ou não, para as melhorar.
O Presidente americano Abraham Lincoln afirmava que “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Fórmula mágica esta que nos leva a querer atingir a perfeição enquanto comunidade organizada. Formalmente vivemos em democracia. As instituições existem e funcionam normalmente, a representação está assegurada por via eleitoral e as escolhas são livres e maioritariamente aceites, as principais funções do Estado são cumpridas com maior ou menor grau de eficiência e qualidade, as liberdades e os direitos fundamentais estão consagrados e são genericamente respeitados.
Ninguém ignora, porém, que é crescente o descontentamento com o desempenho dos governantes o que inevitavelmente contribui para a fragilização das instituições que representam. Também muitos são aqueles que sabem que não existe verdadeira igualdade entre os cidadãos no acesso à justiça, à educação, à saúde, à segurança. Pior ainda, há um sentimento que vivemos afinal numa oligarquia em que o poder está concentrado nas mãos de uns quantos e que o seu exercício não é feito em nome do interesse geral, mas de corporações que o controlam de forma opaca e absolutamente contrária aos princípios democráticos.
Muitos são já os que hoje, de forma mais ou menos demagógica, se aproveitam deste sentimento para zurzir contra os poderes e os interesses instalados. Fazem-no em democracia, porque sob qualquer outro regime teriam dificuldade em fazer-se ouvir, mas procurando sempre derrubar os seus alicerces. É certo que nem todos o fazem com um sentido negativo, isto é, o de intencional e premeditadamente semear a cizânia entre os cidadãos ou instalar o caos nas comunidades. Muitos fazem-no de forma genuína e em reação à falta de resposta do sistema às necessidades básicas ou à garantia de respeito pelos direitos fundamentais.
O problema é que os instalados reagem sempre mal aos que os criticam. Primeiro pela indiferença, depois pela desconsideração, finalmente pela descredibilização através da aplicação de rótulos depreciativos ou mesmo injuriosos. Esta prática não só não resolve o problema como tem até o condão de o acentuar em consequência do extremar de posições.
A democracia plena, a tal em que só 10% dos portugueses acreditam viver, é feita de participação e de procura constante da melhoria das condições de vida das pessoas. Quando a vontade de participar se perde e os problemas sociais e económicos se agudizam, não valerá muito a pena tentar matar a fome, criar emprego ou dar conforto apenas com retórica ou manifestações de boa intenção. Não entender isto e hostilizar quem não aceita ou já não aguenta viver assim é a pior resposta ao problema. Criar a aparência de que vivemos em democracia sem lhe conferir verdadeiro significado e obter os resultados prometidos distribuindo-os de forma justa é comprometer o pacto de confiança entre os cidadãos e as suas instituições representativas. E como dizia Churchill, todas as outras formas de governo já testadas foram piores. Por favor, não estraguem a democracia.