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Opinião
24 de Novembro de 2017 às 13:00

Folha de assentos

Na folha da semana, assentem-se as ilusões da retroactividade num tempo de orçamentação do futuro. Continuamos altamente endividados, mas quer apagar-se a austeridade, como se ela não tivesse existido e não existisse ainda. A paralisia alemã, conjugada com o entorpecimento europeu, aconselha cautelas.

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falta. As alterações climáticas manifestam-se de muitas formas consoante as latitudes. A falta de água no sul da Europa tem como reverso o excesso de água noutras paragens. As mudanças parecem hoje mais flagrantes, mas fazem caminho há muito. Em Portugal, a seca está a atingir uma gravidade que muitos não conhecemos antes. A míngua dos rios Tejo e Douro é um exemplo claro do esgotamento dos aquíferos. O discurso da racionalidade na gestão dos recursos naturais está feito e repetido. Mudaram apenas a acuidade e a urgência da acção. Não há argumento maior para o empenhamento da política do que a boa administração dos homens e do território. Todos os que gostam de encher a boca de reformas estruturais inadiáveis têm bons motivos para afinarem as vozes. Empenhem-se em melhorar a gestão da água, dos solos e da floresta; empenhem-se no combate à desertificação e na adequação das produções agrícolas ao clima; empenhem-se no alargamento das energias renováveis; e envolvam os cidadãos num combate racional pela nossa sustentabilidade. Há 50 anos, as cheias puseram a nu o desamparo de um país pobre. Hoje, apesar do progresso alcançado, a seca mostra bem que o abandono e a morte não desapareceram do nosso horizonte. 

medicamento. A Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, conhecida por Infarmed, vai ser transferida de Lisboa para o Porto. Assim decidiu o Governo logo após o Porto ter perdido o concurso para receber a Agência Europeia do Medicamento, também conhecida por EMA. Compensação? Remissão do pecado, por Lisboa ter querido chamar a EMA a si? Convicção descentralizadora ou esperteza eleitoral? Um pouco de tudo isto. Desconhecia-se até esta semana que houvesse qualquer intenção neste sentido. Não fazia parte do programa do Governo. A transferência resulta de algum estudo? Desconhece-se. Que vantagens tem a transferência? A resposta a esta pergunta é essencial para avaliarmos da racionalidade da decisão. O gesto é político, no sentido em que quer demonstrar uma oportuna vontade descentralizadora, mas a política pressupõe resolução de problemas e procura de melhores soluções. Ora, não se vislumbra que problemas resolve a transferência nem que vantagens traz. Percebem-se custos acrescidos, perda de quadros e instabilidade. Não é politicamente correcto discordar da decisão. Quem critica é decerto centralista. Em qualquer caso, convinha que uma decisão como esta fosse além de um mero acerto de contas Lisboa/Porto. 

ilusão. Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa parecem irmanados na denúncia da grande ilusão. "É uma ilusão pensar que podemos voltar ao ponto antes da crise", diz o Presidente. "A ilusão de que é possível tudo para todos, já não existe", diz o primeiro-ministro. Marcelo baixa as expectativas que Costa não soube, ou não quis, travar em devido tempo. O congelamento das carreiras foi decidido num governo socialista quando as contas públicas apertavam. Até agora. Vão descongelar em Janeiro sem que este Governo tivesse contrariado a ilusão da retroactividade do tempo perdido, sem que tivesse confrontado os funcionários públicos e o País com a persistente debilidade orçamental. A verdade é que não esteve e não está prevista tal contagem de tempo congelado. Tão verdade como o Governo não ter prevenido que assim seria enquanto avançava para o descongelamento das carreiras. A ilusão de António Costa foi pensar que a quimera era sustentável. Vêm aí negociações, manifestações e porventura greves. Talvez mesmo iniciativas parlamentares a exigir contagens. O primeiro-ministro promete negociar com bom senso. Que haverá a negociar? As ilusões são negociáveis? 

anti-semitismo. Soou o alarme em França. Capas de revistas e jornais dão conta de uma nova vaga de anti-semitismo. Além da extrema-direita, a violência tem agora uma marca de inspiração árabe-muçulmana, que recupera estereótipos antigos e a obsessão israelita. A revista Marianne conta que 40% dos actos racistas visam os judeus, que são apenas 1% da população francesa. O número de agressões ultrapassa as 700 em menos de um ano. Há famílias a abandonar os bairros populares onde conviviam com gentes de outras origens. O antigo primeiro-ministro Manuel Valls apelou à mobilização geral contra esta deriva racista. Não é apenas em França. Noutras paragens europeias, há sinais preocupantes de intolerância e medo a lembrar tempos malditos. Inquietemo-nos, mesmo que por cá os sinais sejam mais civilizados. Em Elvas, trabalha-se com orgulho na recuperação da memória judaica. Descobriu-se agora a antiga sinagoga, esquecida durante 500 anos. E avivou-se a mescla da cultura hebraica com a cultura moçárabe de que, afinal, somos feitos.

embaraço. A saída do Reino Unido da União Europeia tem ano, mês, dia e hora marcados: 23 horas do dia 29 de Março de 2019. Tudo muito previsto e rigoroso. Ou talvez não. Não param de se avolumar as dúvidas sobre o futuro britânico. Não há perspectivas de acordo, apenas um esticar de corda para inglês e europeu verem. Mas há cenários. O mais ouvido aponta para um segundo referendo, a marcar pelo Parlamento britânico, depois de chumbar a proposta de acordo de saída que Theresa May lhe apresentar. Por mais implausível que seja, traduz um "wishful thinking". Se hoje fosse feito um novo referendo, poucos acreditam que se mantivesse a decisão. Daí até se voltar atrás, evitando dar seguimento ao Brexit, vai a distância de um embaraço político em que se confundiu imigração, custos e benefícios europeus e o futuro de quem estava no governo e na oposição. Mas há outros cenários. Há quem pense que é possível um não acordo e que ele será vantajoso para quem está de saída. Um exagero, decerto. Há também quem se detenha nos modelos comerciais norueguês e canadiano. E até quem aposte numa transição sem fim… Uma certeza: o Reino Unido tudo fará para continuar no mercado comum. 

balança. Carlos Gaspar é um estudioso atento da ciência política e das relações internacionais. Conjugou a investigação com uma experiência política ímpar nos bastidores da Presidência da República. Foi conselheiro permanente de Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio. Perto de três décadas em que conheceu de perto as transformações profundas que atravessaram a Europa. Carlos Gaspar acaba de publicar "A Balança da Europa" (Alêtheia), um ensaio em que parte das duas grandes guerras europeias do século XX para a reconstrução e reinvenção da Europa. Apogeu e agora declínio. A continuidade da ordem liberal é a questão decisiva. Diz o autor: "As sociedades abertas são vulneráveis e, por definição, estão expostas aos seus inimigos. É essa a sua força principal, se for possível consolidar a estranha aliança entre os Estados nacionais e a democracia pluralista e dar curso às paixões da liberdade e da confiança, da tolerância e da fraternidade, do pluralismo e da dignidade. Sem a tradução dessas paixões na acção política, a impotência e a passividade das democracias ocidentais antecipam o fim da ordem internacional do pós-Guerra Fria". A paralisia alemã é elucidativa. E preocupante. 


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